Há algo de irreparável nos traumas do passado. As marcas, mesmo que enfraqueçam ao longo do tempo, permanecem, seja a nível pessoal ou coletivo. Nada nunca volta a ser como era, e Foi Apenas um Acidente demonstra bem isso, com a trama focada em um grupo de pessoas que se deparam com uma oportunidade de ouro: se vingar de alguém que os torturou.
Contudo,uma dúvida paira sobre a situação: será ele o mesmo homem? Os aspectos que despertam a memória da tortura nos personagens são de natureza que flertam com o abstrato, como o ranger de uma prótese, uma das vítimas tenta reconhecê-lo tocando sua perna: “ele me fez massageá-la durante muito tempo”. Na falta de um reconhecimento facial, podem essas impressões, tão fortes e frágeis ao mesmo tempo, servirem de prova?
Além de testar seus personagens, o diretor Jafar Panahi também busca testar o público. O seu mais recente longa se inicia pela perspectiva de Eqbal (Ebrahim Azizi), o suposto torturador, apresentado, a priori, como um pai de família: Ele está em um carro, dirigindo ao lado de sua esposa grávida, enquanto sua filha brinca no banco de trás. Nada mais ordinário.
Um pequeno acidente na estrada, contudo, o faz cruzar caminhos com Vahid (Vahid Mobasseri), um mecânico que, ao escutar o som da prótese de Eqbal, reacende a memória da tortura, e ele decide que os crimes do passado não podem sair impunes.
Mas diante da incapacidade de atestar a identidade de Eqbal, que jura não saber do que Vahid está falando, o protagonista então parte em busca de pessoas que possam dar certeza de que ele é o tal torturador. Conforme Foi Apenas um Acidente se desenrola, o protagonismo se amplia, dando mais enfâse ao aspecto coletivo da história e aumentando a tensão. Todos querem se vingar, mas mesmo que possam ter total certeza da identidade de Eqbal, uma pergunta fica no ar: vale a pena?
Apesar da seriedade da história, que é bem pessoal para o diretor, visto que o próprio Panahi sofre nas mãos do regime iraniano, há espaço para o humor. Uma das personagens passa toda a empreitada vestida de noiva, após ter seu ensaio fotográfico de casamento interrompido pela situação, e a corrupção cotidiana no Irã vira motivo de troça, com a trupe, diversas vezes, tendo que pagar a mais por alguma coisa ou para se safar da situação.
Há ainda um forte aspecto teatral no longa. Cenas pivotais da trama se desenvolvem de modo bem frontal, e uma das principais locações do filme, a van da Vahid, favorece essa perspectiva, como se estivéssemos diante de um palco, nos envolvendo na situação. A pergunta “o que fazer?” também é dirigida a quem assiste.
E não há resposta que satisfaça a todos, nem os personagens. Vahid toma sua decisão diante da confissão de Eqbal, mas o que ela resolve? A sensação de justiça é temporária. O passado não morre, e talvez nem seja passado. Tudo retorna, e o ciclo de medo continua, das mais diversas formas.