Como fã de Pachinko, adoro narrativas multigeracionas. É um excelente recurso para conectar dramas pessoais à História da qual somos fruto e à contemporaneidade que nos cerca. Chung Serang faz exatamente isso em Pelos olhos de Sisun (2025), publicado pela editora Planeta Brasil com tradução de Guilherme Miranda, ao trazer um romance ficcional centrado na figura da matriarca Shim Sisun, uma sobrevivente do século XX.
Shim Sisun foi uma artista e escritora famosa e que seguindo os passos de uma vida inteira de quebra de paradigmas, deixou como último desejo que a família não realizasse a jesa, culto tradicional coreano aos antepassados. Dez anos após sua morte, a filha mais velha decide guiar a família ao Havaí, local onde Sisun morou parte de sua vida, para prestar uma última e nada tradicional homenagem.
Através de trechos de entrevistas, de documentários, textos escritos pela artista e também pelos olhos de sua própria família, formada majoritariamente por mulheres, vamos conhecendo Sisun. Chung Serang intercala a jornada da família com esses fragmentos, revelando aos poucos essa mulher, artista, amiga, mãe e avó.
Para fugir do ritual tradicional, eles decidem que cada membro da família teria que, durante a estadia no Havaí, escolher um objeto que representasse a relação e as memórias dessa pessoa com a matriarca. Sendo assim, ao longo de uma verdadeira caça ao tesouro, não apenas as diversas facetas de Sisun vão se revelando, assim como as dos próprios personagens, além do impacto dessa mulher em suas vidas.
Nesse sentido, optei por falar o mínimo possível sobre os personagens, pois um dos pontos fortes da narrativa é exatamente descobrirmos aos poucos quem eles são. A filha mais velha que sofre com as expectativas e a pressão de ser a filha mais velha, o filho que precisa lidar com o fato de estar em uma família matriarcal, a cunhada que se refugiava nos livros, a neta que tentava lidar com um trauma etc.
Sisun passou por dois casamentos, teve duas filhas, um filho, uma enteada, três netas e um neto. Esse mosaico de memórias intergeracionais criado por Chung Serang vai ganhando forma conforme cada um conta sua própria história, jamais apartada da história de Sisun e da Coreia, sua terra natal e a qual ela retornou depois de estadias no Havaí e na Alemanha após a Guerra da Coreia.
Sisun era filha de uma nação partida e violentada e viu seus entes queridos serem massacrados pelo próprio governo sul-coreano, com o apoio dos EUA, em uma suposta caça a comunistas, o que me remeteu ao trabalho da Han Kang em Sem despedidas (2025), que aborda de forma dura e poética um desses massacres. Chung Serang se junta a sua conterrânea para fazer sua própria jesa através dessa narrativa.
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“Assim como vivi sem saber como vivia, vou morrer sem saber como vou morrer. Antigamente eu pensava que meus filhos pequenos eram o motivo por que a dor no peito não havia me matado, mas talvez não seja verdade. Vivi por aqueles que morreram antes de mim. Não desisti enquanto passava de uma poça de luto para outra, pois eu era o arquivo dos mortos (…)
– trecho de Apesar de tudo, a última sobrevivente(2002)” p.194
“Às vezes me pergunto onde está o binyeo de minha mãe. Era um grampo de prata de poucos quilates com um pequeno âmbar cravejado. A prata havia enegrecido, mas minha mãe o estimava e pretendia passá-lo para mim um dia. Eu preferiria que ele tivesse sido roubado a enterrado com a minha mãe em algum lugar. Essa ideia me faz querer rasgar o peito. Ouvi dizer que há planos de construir um complexo industrial de alta tecnologia naquele território. Se terraplanarem o lugar onde dezenas estão enterrados, há algum futuro para este país? Nunca vi um coletivo avançar sem a memória. Nas madrugadas em que escrevo petições contra essas coisas, não consigo deixar de pensar no binyeo de minha mãe.
– trecho de O que perdi, o que ganhei (1993)” p. 244
O Havaí não entra na história apenas como um local paradisíaco onde a matriarca passou anos de sua juventude, mas também como um lugar expropriado, violentado. Coreia e Havaí, assim como o Brasil, estranhamente familiares.
Ao tirar esses esqueletos do armário, a autora explora a violência que atravessa gerações, particularmente mulheres, deixando marcas em Sisun, em suas filhas e netas. E para além da violência estatal, ela aborda com destaque as injustiças e agressões cotidianas que atravessam o tempo e as quais qualquer mulher estava e ainda está sujeita.
São temas do passado e do presente. Questões de gênero, o papel da mulher no mercado de trabalho, o silêncio cúmplice masculino, problemas estruturais da sociedade sul-coreana, mas não apenas dela. Há um alinhamento muito claro da escrita ao feminismo que vem sendo construído na Coreia do Sul, cuja uma das abordagens é a recusa em ter relacionamentos com homens, casar e ter filhos como um ato político.
Chung Serang também traz personagens não-binários, levanta tópicos como bullying, xenofobia e imperialismo, porém, como toda a narrativa, de forma leve e por vezes descontraída.
São três gerações conectadas pela dor, pela raiva, mas também pela insurgência e pela beleza de uma mulher que seria muito fácil colar o rótulo de “à frente de seu tempo”, porém não acredito que tal coisa exista. Ela foi, sim, uma mulher que enfrentou o próprio tempo e aí está o brilhantismo.