Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe parte de um ponto de enorme força: manter viva a memória e o olhar de Fatma Hassona, a jovem fotógrafa palestina morta aos 25 anos junto com sua família em um ataque israelense.
A partir de videochamadas mediadas por uma conexão instável — e pela impossibilidade física de entrar em Gaza — Sepideh Farsi constrói um registro atravessado por interrupções, silêncios e telas pixeladas que se tornam parte da própria dramaturgia do luto e da urgência. Cada travamento de imagem carrega o risco real de ser o último, e o filme faz desse risco uma presença constante.
Em entrevista exclusiva para o Jornal Nota, a diretora da obra, Sepideh Farsi reflete sobre as escolhas estéticas e éticas que moldaram o projeto, a relação de amizade que nasceu das filmagens e o impacto duradouro do olhar de Fatma. A diretora detalha como as limitações — técnicas, políticas, emocionais — se converteram em potência criativa, e compartilha as tensões, aprendizagens e dores que permeiam um filme realizado à distância, em meio ao perigo constante vivido por sua protagonista.
Confira a conversa abaixo!
1 – A impossibilidade de entrar em Gaza levou à criação do filme à distância. Você já se perguntou se essa distância, apesar de limitadora, também lhe deu uma perspectiva que não existiria se você tivesse estado lá fisicamente?
Pensei muito nisso. E acredito que o filme teria sido muito diferente se eu tivesse conseguido entrar em Gaza, é claro. Mas se eu tivesse entrado, muito provavelmente não teria conseguido ficar um ano inteiro e filmar durante um ano, porque a situação era instável, perigosa, e mesmo que eu tivesse entrado, é praticamente certo que eu seria obrigada a sair depois de algumas semanas, no máximo.
Então, essa maneira de filmar em continuidade por um ano foi algo que me foi concedido por essa decisão de filmar à distância. E isso afetou, é claro, o filme. De certa forma, limitou-o; de outra forma, libertou-me, e o fato de trabalhar sozinha, como uma só pessoa, na maior parte do filme, permitiu-me continuar por muito mais tempo e ter mais intimidade com a Fatem.
2 – De onde veio a decisão de filmar a tela com um celular, em vez de gravar a tela em si?
A decisão de gravar a tela, filmar a tela, em vez de fazer capturas de tela, veio desde o início e foi para ter mais fluidez e flexibilidade.
Já tive, no passado, duas, na verdade, três vezes experiências de fazer longas-metragens documentais com câmeras muito pequenas ou telefones celulares. Uma vez, em 2007, no meu filme Herodes, outra vez no Irã e Afeganistão, a segunda vez em 2008 e 2009, em Teerã, para o meu filme Tehran Without Permission, e a última vez novamente no Afeganistão, em 2016.
Portanto, estou habituada a essa flexibilidade, ela dá mais mobilidade, ela abre a imagem, em vez de uma gravação de tela que é muito rígida, e foi por isso que decidi filmar a tela.
3 – Você consideraria Fatma uma co-diretora do filme? Por quê?
A Fatma Hassona teve um impacto muito grande no filme e uma participação e parte muito grandes no filme que temos hoje. Mas ela não foi co-diretora no sentido de que todas as decisões relativas à forma foram tomadas por mim, e ela não esteve envolvida no processo de edição, nunca viu o filme em si.
No início, enviei-lhe alguns minutos da primeira edição que fiz da nossa segunda conversa, e acho que ela quis proteger-se e nunca assistiu. A divisão dos nossos papéis na realização do filme foi clara desde o início. Eu era a diretora, ela era a protagonista, e pedi-lhe que partilhasse as suas imagens comigo, nomeadamente fotografia, o seu trabalho fotográfico, o que ela aceitou. Mas não só para o filme, também para as exposições e a publicação do livro, que estão a acontecer agora.
O filme era da minha responsabilidade, e isso estava claro desde o início. E ela nunca fez parte do processo de edição, sound design, todas as escolhas de como filmar e como conduzir as perguntas. Ela nunca pediu para fazer parte. Foi uma clara divisão e decisão entre nós e um acordo.
4 – Como você equilibrava, no dia a dia, a linha tênue entre ser amiga da Fatma e ser a cineasta responsável por documentar esse relacionamento?
Existe de fato uma linha tênue entre ser amiga dela, e mais do que uma amiga, ela se tornou quase família para mim, e ser a cineasta. Mas eu não tive escolha. Os momentos que eu podia ter com ela eram tão raros e imprevisíveis, no sentido de que eu nunca sabia quando ela conseguiria se conectar e quanto tempo poderíamos ficar juntas, que não tínhamos o luxo de separar a conversa íntima da filmagem. Cada conexão era única, frágil, podia ser interrompida a qualquer momento e poderia ser a última, o que de fato aconteceu em 15 de abril.
Nenhuma de nós pensou que seria a última vez que falaríamos, mas no dia seguinte eu soube que era a última vez. Então, enquanto eu estava com ela, filmando-a e conversando com ela, tentava estar lá como amiga e pessoa próxima, e, ao mesmo tempo, ter um olhar atento ao que estava acontecendo, tentando tirar o melhor como cineasta.
5 – Grande parte do filme baseia-se em pequenas rotinas. O que essas microdificuldades lhe ensinaram sobre fazer filmes em zonas de guerra?
Este filme é certamente o trabalho de filmagem mais limitado que já tive. Embora eu estivesse em uma zona segura, era complicado estar disponível a qualquer hora do dia. Eu estive disponível para filmar praticamente o dia inteiro, todos os dias, durante um ano.
Assim que Fatma me enviava um sinal dizendo que estava pronta, eu aparecia e começávamos. Às vezes nos despedíamos; às vezes a conversa era cortada. Fazer filmes de maneira limitada é algo a que estou acostumada. Já tive limitações financeiras, já fiz filmes sem orçamento, sem permissão, com orçamentos muito baixos, ou escondida. A diferença desta vez é que Fatem estava em uma zona de guerra, e eu temia por sua segurança e por sua vida, sem poder fazer nada à distância.
Talvez a maior lição seja que a imprevisibilidade ensina humildade. Ensina a fazer o melhor de cada momento possível com a protagonista e a filmar com criatividade e humildade.
6 – Houve coisas que você escolheu não mostrar, não contar, não filmar? Por quê?
Qualquer filme passa por um processo de seleção. Nesse caso, eu era diretora e montadora, então fiz essas escolhas. Mas não houve momentos em que pensei “não posso mostrar isso”. O acordo com Fatem era claro: quando ela estivesse pronta, me sinalizava e eu começava a filmar, ela sabia disso.
O único momento filmado que não está no filme aconteceu quando ela atendeu sem o véu e me disse que eu poderia ver seu cabelo, mas pediu explicitamente que essa parte não fosse usada. Eu prometi que não usaria e não usei. Ela queria que eu visse seu longo cabelo preto, e isso ficou entre nós.
7 – Fatma fotografava destruição, mas também beleza. Existe um limite ético para a beleza em imagens de guerra, ou a beleza pode ser uma forma legítima de resistência?
Essa era a particularidade do olhar de Fatma Hassona: a mistura de desastre e destruição com beleza, cor e vida. Ela dizia que estava sempre procurando vida em meio à morte. Não acho que exista um limite ético para a beleza em imagens de guerra, porque a vida está sempre ali, mesmo durante a guerra. Isso é uma forma natural de resistência, não só como fotógrafa, mas como ser humano.
Sobreviver já é resistir, e quem registra isso está registrando resistência. É nessa junção que se encontram ética, estética e vida durante a guerra.
8 – Como você se sente ao ver essas imagens hoje?
Eu me sinto muito orgulhosa dela. Também me sinto triste, porque ela era uma jovem fotógrafa talentosa, palestina, com acesso limitado ao mundo, e ainda assim com um trabalho muito poderoso. Fico triste porque ela não está mais aqui para ver a atenção que seu trabalho está recebendo e para criar mais. Fico feliz por ter tantas fotos dela que posso compartilhar com o mundo, e triste porque ela não está mais aqui para ver o que está acontecendo agora.