“Ouro da Floresta”, de Niara Su, faz da literatura um espaço de crítica e denúncia do garimpo ilegal na Amazônia

Que a literatura pode ser um meio para compreendermos a realidade, todos nós sabemos.  Mas quando a lente focaliza na terra tupiniquim a coisa pode não ser tão simples assim. Antonio Candido diz que a literatura como um instrumento de descoberta e interpretação é uma das grandes características fundadoras do nosso espírito literário, isto é: em um país em que a própria literatura nasce e se forma junto à própria nação, a tradição de pesquisa e entendimento sobre esta nunca se cessa. 

E para se empreender uma pesquisa sobre a realidade e torná-la forma literária, a atenção e o engajamento do autor são imprescindíveis. Mais que isso, é necessário que se olhe de maneira ampla mas, também, focalizada, buscando, através do ato da escrita – como pesquisa – tocar na força motriz de determinada realidade, e é isto que Niara Su faz em Ouro da floresta

A obra, lançada agora em 2025 pela Casa do escritor apresenta um olhar crítico sobre a situação do garimpo ilegal no território amazônico ora amplificando para todos os componentes ativos desse cenário, ora centralizando no protagonista Jonas, que simboliza muitos dos anseios dos que se envolvem nesse mercado violento. 

Jonas é um piloto que, endividado após falhar em um empreendimento, resolve atuar no suporte logístico do garimpo, atuação que, apesar de afastada do próprio ato de garimpar em terrenos proibidos, também apresenta riscos inegáveis. Mal chegando na área de garimpo ele já se depara com morte, violência e corrupção, mas a sedução pelo dinheiro acaba por falar mais alto e ele escolhe tomar uma decisão arriscada e fundar seu próprio garimpo. 

Enquanto acompanhamos a trama do protagonista, que funciona como uma espécie de fio condutor de todos os acontecimentos catárticos da história, temos contato com outras vivências – todas partes compositivas e afetadas pelo cenário do garimpo ilegal no país: garimpeiros, ribeirinhos, populações indígenas etc. Nesse sentido, a autora cria um mosaico representativo, fruto de uma densa pesquisa que partiu não somente de um interesse próprio pelo assunto, mas também por uma vontade de fazer da literatura uma locomotiva para a mudança, como ela aponta em suas notas finais: 

“[…] uma matéria da CNN Brasil me chamou muito a atenção e me despertou o interesse em saber mais sobre o que estaria por trás desse crescimento (atividade garimpeira ilegal). Tal matéria era sobre um pedido de ajuda do povo Kayapós, da Terra Indígena Baú, no Pará, para expulsar garimpeiros que invadiram suas terras, pois temiam serem dizimados por conta do aumento expressivo da exploração do ouro em sua região. Esse pedido de ajuda era nada menos que um prenúncio da tragédia Yanomami, e nos mostra como devemos ficar vigilantes, pois uma tragédia humanitária como essa não aconteceu do nada” 

E é exatamente a partir disso – a noção de que a problemática é histórica, secular e, pode-se dizer, inescapável para se pensar o país – que a autora compõe uma narrativa de denúncia. Apesar de não usar de locais verídicos, a autora permite olharmos com clareza para a questão, pode-se enxergar nessa escolha de não dar nome aos bois uma estratégia para a abrangência, para a indefinição que tudo define. Nesse sentido, remetendo a uma montagem quase cinematográfica, o livro focaliza em realidades distintas que se formam e se afetam pela exploração e pela violência da prática do garimpo ilegal, de forma a pesquisar tudo aquilo que compõe o mosaico social, econômico e político. 

A população ribeirinha

Na narrativa tão logo começamos o livro nos deparamos com uma família da comunidade ribeirinha da região: Dona Ceuci, Rosa, Kayãn e Ayana. Todos acolhem Jonas bem, como um turista interessado pelas belezas naturais da cidade, sem saber que ele era um fugitivo da atividade garimpeira de Rocha, prestes a fundar seu próprio negócio de exploração de ouro na região e convencer a muitos da empreitada. O pano de fundo da população ribeirinha que se envolve com o garimpo compõe o que chamo de mosaico narrativo por explorar os medos dessas pessoas que, por escolha própria ou não, tem sua vida completamente invadida pela atividade ilegal. 

Diante da precariedade, é comum que jovens com anseios de mudança de vida se entreguem ao trabalho, que, claro, é de pura exploração, e esse é o caso de Kayãn. O jovem que, aos poucos vai ganhando espaço na narrativa dando destaque aos desencadeamentos sociais e econômicos que a atividade garimpeira provoca na região de forma definidora e irreversível. Essas consequências vão se revelando na obra através da violência contra as mulheres dessas comunidade, através, também, da falta de recursos e dos desafios de assistência educacional e de saúde na região. Somado a isso, a composição de Niara Su não deixa de apontar para o problema secular da dizimação de populações indígenas inteiras pela atividade do garimpo. 

Terra e vida em disputa

Niara é a primeira personagem pertencente a uma aldeia indígena não nomeada a aparecer na narrativa. Talvez por seu ímpeto revolucionário e de denúncia que a autora tenha a batizado dessa maneira: ambas, autora e personagem, agem como podem para tentar mudar uma realidade. 

A presença de Niara e de seu povo é uma grande força de virada da narrativa que, cada vez caminha para um desastre ambiental e social violento pelas mãos de Rocha — o terrível líder do crime organizado que domina quase toda a região, agora também garimpeiro, e que persegue Jonas —  e deste próprio protagonista, que age sem cautela na exploração de uma área que desconhece.

É Niara e seu povo que apontam para as consequências internas do garimpo ilegal nas regiões amazônicas, desde a tomada violenta de terras já ocupadas por estes povos, à própria mudança imperativa de dinâmica cultural, social e étnica. Em dado momento, a personagem já esgotada da situação, reclama de sua dificuldade em sonhar e em seguir os rituais de seu povo por conta do ódio que a toma, da vontade de lutar e agir de imediato. 

Como podemos viver nossos cultos com tanta violência contra nosso povo? Não tenho mais paz para ouvir os espíritos da floresta…Estou sempre em alerta para tentar proteger nossa gente…”  

Entre essas e outras situações, para além da revoltante violência, também retratada no livro contra esses povos, principalmente as mulheres, pelos garimpeiros da região, a autora chama atenção para a dizimação por inteiro da cultura e tradição desses povos que ocupam há séculos suas regiões por direito. Ela mostra a violência simbólica da necessidade da luta em detrimento das tradições e das crenças.

[…] não deixem que essa luta contra a destruição da nossa floresta os faça abandonar, sem perceber, nossas vivências ancestrais – clamou o Pajé”  

Ecoresistência 

Nas notas finais, Niara Su diz que desde 2022, quando passou a se interessar com veemência pelo assunto, ela tem pesquisado e escrito sobre a problemática do garimpo ilegal e suas disfunções estruturais no tecido socioambiental brasileiro. Essa preocupação se torna clara por todo o livro, mas principalmente nos momentos finais quando o protagonista percebe as atrocidades que cometeu contra todo um povo e uma região. 

A obra se encerra buscando chamar a atenção do leitor diante da noção de riqueza, ou, mais especificamente, do “ouro”. Nesse sentido, a autora coloca como algo de valor a própria existência plena da floresta e seu respeito. É uma semente natural (dedo-de-índio) que salva a vida do protagonista, e é no reconhecimento do valor das riquezas naturais que tanto ele quanto os outros personagens que antes se envolviam com o garimpo ilegal se reestruturam, eles passam a trabalhar com o ecoturismo e a militância pela causa indígena. Esse encerramento permite um olhar crítico em que o valor econômico deste ouro, causador de violência e desastres na narrativa e na vida real, não se compara ao da floresta viva e pulsante, que gera e mantém vidas.

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Sobre a autora:

Niara Su, natural de São Bernardo do Campo (SP), Graduada em Direito, uniu o raciocínio jurídico à sensibilidade artística para começar na sua jornada de escrita criativa. O livro Ouro da Floresta foi concebido, originalmente, como um roteiro de longa-metragem, que  em 2024 chegou às quartas de final do prestigiado BlueCat Screenplay Competition, nos Estados Unidos, e agora em 2025 foi transformado em obra literária.

Instagram: @ourodafloresta_livro

Tiktok: @ourodafloresta

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