A língua portuguesa veio do latim. É possível que você já tenha ouvido falar sobre isso. A afirmação não está errada, mas também não é tão simples quanto parece. Afinal, de qual latim estamos falando? Do latim clássico, codificado e literário, ou do latim vulgar, usado pelas camadas socialmente desfavorecidas? É deste último que nasce o português. Para chegar à língua que conhecemos hoje, foram necessários muitos séculos de transformações, e, devido ao processo de colonização, o português falado no Brasil desenvolveu particularidades próprias
No livro Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português, Caetano Galindo inicia a obra com uma personagem fictícia que acaba de nascer: Luzia. Ela herdará a língua portuguesa. Caso receba educação formal, aprenderá uma língua apresentada como homogênea e unilateral, marcada por uma ideologia burguesa , a chamada “língua de Camões”, que chegou ao território brasileiro em 1500. No entanto, o português brasileiro é também resultado de povos originários que foram exterminados e dos africanos que foram escravizados. É, além disso, fruto do idioma falado por “[…] milhões de pretos, pardos, amarelos, indígenas, pobres, desprovidos e desconsiderados”
Sobre a presença e a consideração dos africanos no português brasileiro, a escritora Ana Maria Gonçalves relembra um termo cunhado por Lélia Gonzalez. Em sua posse na Academia Brasileira de Letras, a autora de Um defeito de cor afirma que “vem falando pretuguês”. Mas, afinal, o que seria o pretoguês? Gonzalez o caracteriza da seguinte forma:
Aquilo que chamo “pretuguês” e que nada mais é do que a marca de africanização do português falado no Brasil (nunca esquecendo que o colonizador chamava africanos de “pretos”, e de “crioulos” os nascidos no Brasil) […] o caráter tonal e rítmico das línguas africanas trazidas para o novo mundo, e também a ausência de certas consoantes (como o L ou o R, por exemplo), apontam para um aspecto pouco explorado da influência negra na formação histórico-cultural do continente como um todo […] Por essa razão, gosto de fazer um trocadilho, afirmando que o português, o lusitano, “não fala e nem diz bunda” (do verbo desbundar).
Lélia Gonzalez, já no século passado, já defendia o pretuguês. Para o Jornal Público, Caetano Galindo fala que “a gente levou muito tempo para entender que uma imensa das marcas específicas de pronúncia, de morfologia, de construção do português do Brasil, que eram tidas como erros, eram originalmente marcas da pronúncia dos escravizados.”
É nítido que a contribuição africana está para além da força de trabalho nas minas de ouro, produção de café e fabricação de açúcar. A antropóloga Vânia Penha-lopes defende que os escravizados trouxeram gramáticas, léxicos e musicalidade. Usamos palavras como caçula, bagunça, cachimbo e gangorra. Além disso, na fala cotidiana iniciamos frases por pronomes átonos — lembremos do poema Pronominais de Oswald de Andrade — estamos a todo instante falando “mé dá isso ou aquilo”.
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.
(Oswald de Andrade)
Nosso português não é apenas uma herança da língua dos colonizadores europeus, mas um território linguístico plural, moldado por processos históricos de encontros e imposições culturais. A língua a qual você fala, na verdade, está muito distante do latim de Cícero e de Virgílio.
Bibliografia Consultada:
GALINDO, Caetano W. Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português. 1 ed. São Paulo, 2023, Companhia das Letras.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios e intervenções. Org: Flávia Rios, Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
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