A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, é um filme baseado no livro homônimo de Davi Kopenawa Yanomami, xamã e um dos líderes do povo Yanomami
Logo na primeira cena somos lançados à inversão sensorial do tempo.
É preciso respirar.
O vento é elemento principal desta narrativa: das nuvens e folhas que balançam, às penas no topo das cabeças e cantos de celebração, simbolismos frequentemente esquecidos por nossa vida desconectada, a árvore central da vista da aldeia da Serra dos Ventos é uma das protagonistas que balança sobre a montanha durante o longa.
Depois da introdução de todos que colaboram com a produção, acompanhamos em tempo real o caminhar dos Yanomami, entoando seus cantos pelo solo aberto por garimpeiros na floresta. O caminho desprotegido marca o início da jornada da festa reahu, em direção à aldeia Watoriki (Serra dos Ventos), de encontro ao rio Ananari u, local onde festejam a morte do sogro xamã de Davi Kopenawa, que aparece ao fim da longuíssima cena com uma espingarda desarmada pendendo no ombro. Seu olhar direto à câmera tem corte seco para nuvens densas e carregadas.
“Você já ouviu falar sobre a queda do céu?”, o segundo estranhamento para nossos corpos: a língua originária entoada sob trovões. “(…) isso acontecerá de novo. É isso que os sonhos dizem, entoados para nós xamãs, tomadores do yãkoana”. E o céu continua em seu ritmo próprio, lento e sutil, abrindo o tempo e nos fazendo entender: estamos num outro lugar, assistindo a um tempo onde mesquinharias não domam o vento. Olhos atentos, jovens e velhos, observam mais do que o céu. Dedos apontam e conversam em silêncio com a tempestade que se aproxima.
A primeira lança aponta para o céu: “os [seus] espíritos xapiri estão bravos.”
Nenhuma alteração de voz se percebe diante desta afirmação – esteja atento, leitor.
Com delicadeza certamente herdada de Glauber Rocha, essas informações nos são dadas junto à imagens de crianças e bebês e bananas verdes recém colhidas. São várias as vezes que Eryk Rocha, um dos diretores do longa, preenche a tela com imagens fortes, aliado à sensibilidade de Gabriela Carneiro, diretora do longa, e suas lindas sobreposições imagéticas que mesclam reflexos dos rios com as peles dos Yanomami.
Guiados pela voz de Davi assistimos às bananeiras mortas, contrastadas à imagens de gente viva e nova, que servirão de alimento para àqueles que celebram a partida do morto nos dias que seguem.
A dilatação do tempo continua durante o filme, nos induzindo a criar imagens sobre as falas e conversas sob o céu – ainda bem, ufa: dentre tantos grandes inimigos do nosso tempo o ter desaprendido a imaginar é com certeza o mais cruel. O mingau de banana feito na madrugada e não comido pela aldeia será navegado na barca lançada ao rio Ananari u pela manhã.
Desde o início da jornada, entre os cantos orgânicos e sons naturais, somos surpreendidos por sonoridades estáticas, longínquas e perversas. As aldeias se comunicam com um rádio antigo sobre os caminhos que trilham, sobre onde estão, sobre os garimpeiros que se aproximam, deixando pelo caminho as notícias que se seguem: pequenas medidas de proteção ao paradeiro da população. Além de informações sobre a saúde da comida que carregam, quantidade e remédios.
Pouco a pouco somos arrematados e embalados por falas intensas no breu da noite, lançados ao sumo dos céus, enquanto xamãs cozinham o tal mingau de banana para alimentar a população que os acompanha. A importância do sonho não desaparece com o caminhar das imagens, pelo contrário, reaparece e é enfatizada o tempo todo: por debaixo das estrelas, por dentro dos rios, a voz de Davi Kopenawa nos lembra de que as respostas estão todas ali, guardadas noite adentro, e basta escutarmos com cuidado para lembrarmo-nos de que não estamos aqui por acaso.
Foi dentro destas falas entoadas que meu corpo em transe rememorou meus próprios encontros com xamãs na Serra da Mantiqueira, quando fui encubida de cuidar do fogo que cozinharia o cacau do dia seguinte. Normalmente os responsáveis pelo fogo são homens, e quando questionei a tarefa, escutei: “Você agora vá descansar, porque já preparei o mundo dos sonhos.”, embalada na rede então, fechei os olhos e em pouco tempo entrei numa oca, onde eu e mais gente do grupo caminhamos em círculos, que pareciam infinitos. Ouvi: “Aqui quem entra mulher, sai homem. E homem sai mulher”. Não sei mensurar o tempo deste transe. Acordei quando saí da oca. A noite já cobria toda a montanha; quando cheguei de volta ao forno à lenha, Guiel (xamã que nos acompanhava) tocou meu ombro. Meu corpo se arrepiou e nunca mais esqueci esse momento. Passei a noite curando o fogo enquanto nós todos dançamos ao redor da grande fogueira debaixo da lua cheia.
O mesmo arrepio me aconteceu ao escutar o canto das mulheres Yanomami durante a noite (dia) na sala de cinema. Entendi o que estava assistindo, e me deixei levar pelo ensinamento que riscava minhas retinas, ouvidos e pele, me tornando cada vez mais atenta à língua que faz parte de lugares que desconheço e que tem muito a me ensinar, pois as entendo muito bem.
As imagens, deslumbrantes, são acompanhadas da denúncia necessária.
É no amanhecer que Davi Kopenawa também fala aos jovens da aldeia, que gostam de imitar os näpe (homens brancos), para que ao menos levem a sabedoria ancestral onde decidirem ir. A fala de Davi, oposta ao que gloriosamente chamamos de “educação positiva” os lembra que ele também tentou se parecer com estes seres, nós, longínquos e estranhos, não os incubindo a culpa, o contrário, realmente entoando conhecimentos, já que o próprio corpo do xamã também passou por estados parecidos, e que no meio do caminho, encontrou na proximidade da língua a direção para fazer-se comunicar: trazer para mais perto de nós, näpe, os conhecimentos que infelizmente nos é nulo. Davi Kopenawa aprendeu português para nos falar sobre o seu povo – e provavelmente por isso mesmo tem hoje um filme sendo lançado.
Entre todas essas falas, calmas, escutamos a tragédia. Entre os ensinamentos profundos escutamos a raiva – que não aparece na alteração de voz, e sim na escolha das palavras “Meu corpo está incandescente”, ou “Vocês não imaginavam que o que eu fazia era luta. Olhem para os seus sonhos.”
Ao lado da fogueira um dos xamãs conta e reconta a história do trabalho forçado que sofreu na infância, relembra um passado recente onde assistiu seus pais e avós serem dizimados, e diretamente nos diz que espera que façamos algo para sermos aliados, já que ali está a equipe de filmagem captando sua imagem por um interesse desconhecido para ele, que pode apenas esperançar que seja para o bem.
Nós, näpe, recebemos sem cerimônias o peso do garimpo, da extração de ouro, petróleo e madeira. Como contação de história, as falas narram como tudo acontece por ali há anos, dentro da mata fechada. O rádio e a estática são sons que cortam o cantar dos pássaros e fazem com que as aldeias tenham o mínimo de proteção: os garimpeiros avançam de encontro aos povos, trazendo sujeira, doença, estupro, medo e morte.
O desconforto que senti ao escutar o perigo que assola esse povo foi muito mais cruel saído das bocas deles do que das terríveis imagens que nos mostram nos jornais. Pois como avisei no início deste texto: o tom de voz deles não se altera.
Em meio à sacanagem sem vergonha da COP30, me decepcionei ao ver a sala de cinema vazia, quando um dos temas mais urgentes nos pede para tomarmos mais cuidado. A terra dos “homens de mercadoria” é casa para quem sabe cuidar do que é seu por direito: nós não sabemos, e parece que não temos interesse em aprender.
“As pragas que destroem o mundo são vocês mesmos que arrancam da terra”, e isso não há como negar. Acho bom o sentimento de vergonha que me acometeu durante alguns momentos do longa, é realmente triste saber que minha raça age de maneira tão mesquinha – mesmo que já saiba disso, é sempre merecido mais um dizer.
E foi alívio saber que não podemos, por mais que tentemos, habitar o que não nos é direito. Somos limitados em capacidade tátil, nós, näpe, homens brancos, que só choram verdadeiramente por causa de dinheiro – uma peça invisível da roda do capitalismo.
Aliás, é preciso mencionar que essas palavras: dinheiro, capitalismo, ouro, garimpo, madeireiros, petróleo, são ditas em português, até porque com certeza esse vocabulário não habita o povo da mata, que realmente não precisa de coisas tão supérfluas para existir.
Com lanças apontadas ao céu, os xamãs seguram o ser maior que nós, e deixam muito claro que caso venham a desaparecer, o céu desabará sobre as capitais.