Segundo o dicionário Michaelis, lar é “casa onde habita uma família”. O mesmo dicionário define família como “conjunto de pessoas, em geral ligadas por laços de parentesco, que vivem sob o mesmo teto”. Do ponto de vista técnico, não é preciso ter um pai, uma mãe e seus filhos para haver uma família. Do ponto de vista prático, também não. Até porque o conceito de família vem mudando, e documentando estas mudanças está o documentário “Lar”.
“Família é isso: um compromisso de amor e cuidado, mesmo quando desafia as conveniências e os padrões”, define logo de cara o diretor Leandro Wenceslau, estreante em longas-metragens. Ele foi criado pelos avós – assim como eu, mas também tive a companhia de minha mãe sob nosso teto. Por isso, para ele e para mim, conceitos distintos de família são tão fáceis de aceitar.
De novo o pessoal e o profissional se entrelaçam quando Leandro decide formar uma família com seu companheiro. O encontro com outras famílias, a pesquisa para o projeto pessoal acabou desembocando no filme que está sendo projetado, ele nos conta.
Criança é tudo igual, só muda o endereço. E as crianças da Geração Alpha já acordam e vão mexer no celular. Ao menos é isso que acontece com a vaidosa Sarah e com o entusiasta de futebol Hael. Ela vive com a mãe adotiva, ele passa tempo com os avós quando não está com a mãe e sua companheira. Numa noite, Hael compara o tamanho de sua mão com as mãos dos avós: ele está crescendo e os alcançando. Um dia, Sarah foge de casa e, ao ser encontrada, precisa voltar para o abrigo, para frustração enorme de sua mãe adotiva.
Jovens que foram adotados numa “adoção tardia”, isto é, na adolescência, trocam experiências em conversas registradas pela câmera, e um deles aconselha outro jovem que está revoltado por ter ido parar num abrigo. “A culpa não é sua” é a verdade que precisa ser internalizada a todo custo. E perseverar sempre, mesmo que, como aconteceu com eles, a adoção não dê certo na primeira vez.
Um casal homoafetivo adotou Wallace, garoto negro, e se viu alvo de preconceitos na escola do menino. Um dos pais comenta sobre como o discurso de inclusão da escola só abarca crianças com laudo, não se estendendo para condições como ser recentemente adotado – o comportamento do menino havia sido justificado inclusive com discurso racista e homofóbico.
E, bem próximo do final, é introduzida uma família capitaneada por uma mulher trans, sem espaço para desenvolver sua história. Parece que foi uma decisão de última hora, como que se blindando contra possíveis acusações de transfobia pelas escolhas das demais famílias. Mas serve também como gancho: quem sabe não vem por aí um “Lar 2”.
As estatísticas da adoção no Brasil mostram números que não fecham: há quase cinco mil crianças e adolescentes esperando para ser adotados, e mais de 36 mil pessoas aptas a adotar alguém. Mas por que existem ainda a fila e os abrigos? Porque há preferências e exigências de quem quer adotar: em geral, preferem crianças menores e de pele branca, mas 70% dos que esperam pela adoção têm mais de oito anos de idade, além disso, quase um quinto têm deficiência, o que também costuma afastar possíveis novos pais e mães.
Leandro Wenceslau, em sua narração em off em primeira pessoa, conta que cresceu sem referências de como navegar este mundo como um homem gay. Como documentário, “Lar” não revoluciona o gênero, e provavelmente nunca foi esse seu intento. É, sim, exemplo de representatividade, desses momentos mágicos em que a tela vira espelho e é possível se ver ali, como personagem além de espectador.
“Lar” é distribuído pela Embaúba Filmes e estreia dia 13 de novembro nos cinemas. Confira o trailer:
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