“Ladeira em Carrinhos de Supermercado”: o peso do trauma nas relações familiares

Ex-patinadora, incapaz de se desvencilhar de um casamento abusivo, e vivendo uma vida de aparências, recebe a visita inesperada de seu irmão mais velho (de quem não tinha notícias há tempos), um homem doente, que nunca conseguiu se fixar em um endereço, emprego ou relacionamento. Este encontro, pontuado por doçura e hostilidade, sarcasmo e decoro, ressuscita personagens e fatos traumáticos do passado de ambos, como uma infância às sombras de um pai sádico e de uma mãe esquizofrênica.

Com texto e direção de Sergio Mello, e Igor Kovalewski e Rebecca Leão no elenco, Ladeira em Carrinhos de Supermercado se passa em uma casa da periferia de São Paulo, em uma única tarde. E, conforme a noite vai se aproximando, o clima se torna mais tenso e ameaçador.

O que determina se uma dramaturgia pode ser um clássico? Na minha opinião, não é a complexidade de um texto, ou seu tema contemporâneo, mas sim a capacidade de abordar temas atemporais e intrínsecos das relações sociais e íntimas de cada um. Um exemplo de um clássico é Tio Vania, onde Tchekhov expõe a tragédia silenciosa do cotidiano, na qual os personagens estão presos em circunstâncias que os impedem de realizar seus sonhos e afetos. Partindo desse meu princípio, acredito que Ladeira em Carrinhos de Supermercado pode vir a se tornar um clássico da dramaturgia contemporânea. O texto de Sergio Mello explora as relações familiares e sua complexidade, quebrando paradigmas de relações “perfeitas” e buscando apresentar os efeitos desses traumas nas relações familiares.

A dramaturgia de Mello constrói sua potência a partir de elementos clássicos, para explorar um tema atemporal: os efeitos duradouros do trauma familiar. Através do reencontro entre dois irmãos marcados por uma infância traumática, a peça vai revelando como as sombras de um passado violento e disfuncional continuam a moldar e aprisionar suas vidas no presente. É justamente ao mergulhar nessa tragédia silenciosa do cotidiano, expondo a profunda humanidade de personagens presos em suas circunstâncias, que a obra demonstra seu potencial para se tornar um clássico, justamente por abordar verdades universais e intrínsecas das relações humanas.

Foto: Edson Kumasaka

A dupla formada por Rebecca Leão e Igor Kovalewski, que dão vidas aos irmãos, enfrenta o desafio central da peça: materializar, através da corporeidade e das nuances interpretativas, os traumas profundos que assombram ambos os irmãos. O texto exige que os atores naveguem por uma complexa gama de emoções contraditórias, traduzindo em gestos e olhares a história de uma infância devastada por um pai sádico e uma mãe esquizofrênica.

A utilização de pequenos gestos para sensibilizar o público, como o incômodo  da mão utilizado por Rebecca, gera uma atuação contida e detalhista, alinhada à tradição do realismo psicológico, onde o não-dito e os subtextos carregam tanta ou mais importância que o diálogo explícito. Esta escolha é fundamental para tornar visível o invisível, transformando feridas internas em uma presença física palpável em cena, permitindo que o público testemunhe essa dor silenciosa que consome os personagens, e que é essencial para o potencial da dramaturgia.

Tecnicamente percebe-se uma construção coerente e sofisticada que serve integralmente ao realismo psicológico da peça. A opção radical de colocar o público no palco, em proximidade física com os atores, transforma a experiência em uma intimidade quase voyeurista, como espiar a intimidade através da fechadura, intensificando o desconforto e a cumplicidade do espectador com o drama. Essa proximidade é tensionada pela cenografia de Irineu Villanoeva Junior, que usa a amplitude do espaço cênico como um signo visual do abismo emocional que separa os irmãos, mesmo quando fisicamente próximos. A iluminação de Gabriel Greghi, por sua vez, atua como um elemento narrativo não-verbal crucial, dosando o ritmo e a atmosfera ao longo da única tarde em que a peça se passa, traduzindo em luz e sombra a progressão da tensão psicológica que culmina com a chegada da noite.

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Se no texto Sergio Mello nos entrega um dos trabalhos mais brilhantes da dramaturgia contemporânea brasileira, na direção ele desenvolve um trabalho eficiente. Suas escolhas optam por uma abordagem clássica que atua em perfeita sintonia com a potência de seu próprio texto. Sua encenação, apoiada nos signos, evita experimentalismos formais para priorizar a profundidade psicológica e a clareza narrativa.

Esta coerência entre forma e conteúdo, onde cada escolha técnica serve ao realismo psicológico e à exploração dos traumas, é o que torna a sua direção eficaz, criando um ambiente implacável onde o passado se faz presente de forma tão palpável e ameaçadora quanto a noite que se aproxima.


Ladeira em Carrinhos de Supermercado é uma obra de rara potência e pertinência no cenário teatral contemporâneo. Ao unir uma dramaturgia afiada e atemporal, que investiga com coragem as cicatrizes invisíveis da família, a uma encenação coerente e sensível, Sergio Mello não apenas apresenta um estudo de personagens profundamente humano, mas oferece um espelho no qual podemos reconhecer as próprias dinâmicas que nos constituem. A peça oferece ao espectador a verdade dolorosa e libertadora de seu reconhecimento. É essa combinação de texto preciso, interpretação contida e visceral, e uma concepção cênica que amplifica a intimidade e o conflito, que garante à obra seu lugar de destaque. Ladeira em Carrinhos de Supermercado é, portanto, mais do que uma peça eficaz; é uma experiência teatral necessária, que ressoa muito após o palco escurecer, reafirmando o poder do teatro de tocar nas feridas universais que, silenciosamente, nos definem.

Ficha Técnica:
Dramaturgia e Direção: Sergio Mello.
Elenco: Rebecca Leão e Igor Kovalewski.
Desenho de luz: Gabriel Greghi.
Cenografia e objetaria: Irineu Villanoeva Junior.
Produção: Vivian Vineyard.
Assessoria de Imprensa – M.Fernanda Teixeira e Maurício Barreira/ Arteplural.
Técnico de palco: Guilherme Felipe.
Fotos – Edson Kumasaka.

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