“A arquitetura gravou as ideias da raça humana. Não somente todo símbolo religioso, mas todo pensamento humano tem sua página nesse vasto livro. (…) Os maiores produtos da arquitetura são menos o trabalho de indivíduos do que da sociedade; são o fruto do esforço de uma nação mais do que o lampejo inspirado de um homem genial”. Assim falou Victor Hugo em sua primeira obra-prima, Notre Dame de Paris – popularmente conhecida como O Corcunda de Notre Dame.
O livro, uma das mais brilhantes obras da literatura mundial, tem um mérito que vai além da beleza magistral da prosa de seu autor ou da honestidade e crueza humanas da história que relata, porém: foi ele o responsável por efetivamente criar a catedral de Notre-Dame, como conhecemos hoje, como um símbolo da França e de sua cultura no mundo – provando a importância da arte e da literatura para a construção da memória, e dos marcos da história e da cultura material de um povo para sua psicologia coletiva.
Hoje, Paris e o mundo comemoram a reabertura da Catedral totalmente renovada cinco anos após o trágico e histórico incêndio que a obrigou a fechar suas portas. Menos de duzentos anos atrás, porém, a catedral estava à beira da ruína e da demolição quando foi salva por um sineiro deformado, um torturado arquidiácono, uma bela cigana e um jovem com um dom excepcional para as palavras – e é essa a história que relembraremos hoje.
O Corcunda de Notre Dame de Paris:
Publicado pela primeira vez em 1831, Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, é uma obra monumental em mais de um sentido. Apesar de muito mais curta que Os Miseráveis, o livro – que Hugo escreveu quanto tinha apenas 28 anos de idade – é igualmente denso. Nele, o autor constrói um retrato fascinante de Paris no final da Idade Média, ao mesmo tempo em que reflete sobre a história, a arquitetura e a humanidade em suas mais diversas facetas – algo que sempre fez brilhantemente bem em seus textos.
Apesar de hoje ser conhecido como O Corcunda de Notre Dame por quase todos os leitores, é muito importante destacar que esse não é o título original da obra, que em sua concepção – e, na França, até hoje – foi nomeada em homenagem à catedral, Notre Dame de Paris. O título foi alterado apenas quando o livro começou a ser vendido no exterior, e os editores de Hugo lhe convenceram (provavelmente com razão) de que o título O Corcunda de Notre Dame seria mais atraente para leitores estrangeiros. Embora ainda hoje algumas edições fora da França escolham por traduzir o título original ao pé da letra – é possível encontrar edições brasileiras intituladas Nossa Senhora de Paris, ou versões americanas e britânicas com o título Our Lady of Paris – é inegável que o título que tornou-se icônico foi o outro.
Isso por si só é interessante, pois embora Hugo não tenha protestado a mudança, Notre-Dame de Paris foi um título imensamente intencional exatamente por centralizar a catedral como protagonista da história – o que ela é. Esse talvez seja um dos motivos pelos quais muitos leitores que entram em contato com o livro pela primeira vez se surpreendam com a personagem de Quasimodo e seu papel na história – muito diferente do que foi popularizado por várias adaptações (muitas excelentes à sua própria maneira, mesmo quando diferentes do livro): não um herói sofrido, mas um personagem importante dentre vários, e tão falho e, por vezes, mau como eles. Notre-Dame de Paris é o título ideal pois é disso que o romance se trata – não do Corcunda, mas da Catedral.
Desde a abertura do romance, Victor Hugo deixa claro que a catedral de Notre-Dame não é apenas um pano de fundo para a narrativa; ela é, de fato, seu personagem central, junto com Quasímodo, Frollo, Phoebus, Esmeralda, Gringoire e Clopin. Sua imponência arquitetônica, seu simbolismo religioso e cultural, e sua história de glórias e declínios refletem os próprios dilemas enfrentados pelos outros personagens. Hugo descreve a catedral com detalhes minuciosos, quase arqueológicos, que vão além da mera construção visual: ele examina sua função histórica e sua importância espiritual, transformando-a em uma presença viva e dinâmica. Há, inclusive, mais de um capítulo dedicado – como Victor Hugo adora fazer – não a nenhuma das histórias contadas, mas simplesmente à arquitetura enquanto conceito e instrumento histórico.
O livro acompanha uma história sobre desejo, justiça e moral, no centro da qual está a bela cigana Esmeralda, que chama a atenção de três homens – o arquidiácono Frollo, o sineiro Quasímodo e o soldado Phoebus. Os três a desejam, cada um à sua maneira, e para cada um, ela representa algo diferente, sem que qualquer um deles de fato chegue a vê-la por ela própria. Em meio a isso, como é a expertise de Hugo, questões da França medieval envolvendo justiça, pobreza, arte e diversos tópicos de natureza política, religiosa e social se desenrolam, culminando em uma tragédia de grande escala.
No romance, a catedral é, ao mesmo tempo, um espaço físico e um símbolo maior da alma de Paris. É nela que convergem as tramas de Esmeralda, a cigana encantadora; Quasímodo, o sineiro deformado; e Claude Frollo, o arquidiácono obcecado, dentre tantas outras – a do poeta Gringoire, do soldado Phoebus, do rei dos ciganos Clopin, dos sans-papiers. Cada personagem interage com Notre-Dame de maneira distinta, mas todos estão inevitavelmente ligados a ela. Para Quasímodo, a catedral é um refúgio e um lar; para Esmeralda, um lugar de esperança e, posteriormente, de julgamento; para Frollo, um local de poder e tormento espiritual; para os destituídos, de asilo.
O gótico como metáfora
Victor Hugo não economiza palavras – não que um dia ele tenha sequer cogitado tal possibilidade – para celebrar a arquitetura gótica de Notre-Dame, que ele descreve como o ápice da criatividade humana. Em um dos trechos mais célebres do livro, Hugo lamenta a degradação da catedral ao longo dos séculos, causada pela negligência e pelas reformas mal conduzidas. Ele escreve com amargura sobre a substituição de partes originais por adições que ele considera de mau gosto, denunciando o desrespeito pela obra dos construtores medievais.
O dualismo da arquitetura gótica da catedral é utilizado a exaustão pela narrativa, e serve como metáfora perfeita para seus temas e personagens. Notre-Dame é tanto espectadora quanto participante de seus destinos: Esmeralda, com sua bondade e inocência, contrasta com a dureza do mundo que a cerca; sua conexão com Notre-Dame é mais emocional do que espiritual, pois a catedral é seu santuário quando enfrenta as injustiças da sociedade, mas também se transforma em palco de seu julgamento. Quasímodo, por outro lado, tem uma relação quase mística com o edifício, do qual ele conhece cada canto, cada sino, cada sombra. Para ele, Notre-Dame é mais do que uma construção: é uma extensão de si mesmo, um local onde pode existir sem os julgamentos do mundo exterior – mas, ao mesmo tempo, um local que o aprisiona, e de onde ele gostaria de sair. Claude Frollo, o personagem mais complexo do livro – e provavelmente mais protagonista do que o próprio Quasímodo -, representa o conflito entre a fé e a obsessão. Como arquidiácono, ele deveria ser um guardião espiritual de Notre-Dame, mas suas ações acabam por profanar tanto a catedral quanto sua própria alma. Sua relação com Esmeralda é marcada pela dualidade de desejo e repulsa, e a catedral, com suas alturas celestiais e suas criptas sombrias, reflete esse dualismo. A tensão entre o sagrado e o profano permeia todo o romance, e Notre-Dame, como palco central, é onde essas forças colidem.
Mais que isso, porém, o papel de Notre-Dame na narrativa como estabelecida por Hugo não se limita aos personagens nela contidos: a catedral gótica, com suas torres imponentes, vitrais intrincados e gárgulas vigilantes, torna-se uma metáfora para a própria França. Assim como o edifício, o país passou por altos e baixos, períodos de grandeza e de decadência, e o tema estava particularmente em voga durante o período em que a obra foi escrita – a Revolução Francesa tinha acontecido quarenta anos antes, e desde então a França já tinha visto as glórias republicanas e o grotesco Terror revolucionário, passado pelo diretório, pelos jacobinos, pelos girondinos, por Napoleão, pela Restauração Bourbon, por Napoleão outra vez, e mais uma vez pelos Bourbon. A psicologia coletiva da França naquele momento estava muito voltada para questões de luz e sombra, bem e mal, passado e futuro, memória e previsão.
É nesse contexto que nasce a primeira obra prima do jovem autor, e sua tese sobre a arquitetura e sobre catedrais é particularmente compreensível assim. Para Hugo, preservar Notre-Dame não era apenas uma questão de respeito à arquitetura, mas também uma forma de preservar a identidade nacional em um período de rápidas mudanças e modernizações. Sua visão da catedral como um monumento de resistência à passagem do tempo ecoa ao longo do livro, tornando-a uma representação tangível da continuidade histórica – sobretudo em períodos em que instrumentos de memória menos tangíveis, como coisas escritas em papel ou mesmo monumentos mais frágeis, como estátuas, eram destruídos com tanta facilidade.
A história de uma Catedral
A Catedral de Notre-Dame de Paris é um dos símbolos mais icônicos da França e um marco arquitetônico que atravessou séculos de história, testemunhando transformações religiosas, políticas e culturais. Entretanto, nem sempre foi assim. Situada na Île de la Cité, no coração de Paris, a catedral começou a ser construída em 1163, sob o reinado de Luís VII, com a primeira pedra sendo colocada pelo Papa Alexandre III, segundo a tradição. A catedral foi projetada para substituir uma igreja anterior dedicada a São Estêvão e refletir a importância crescente de Paris como centro político, econômico e religioso na França medieval. Durante esse período, o estilo arquitetônico gótico estava em ascensão, com inovações como os arcos ogivais, os contrafortes externos e os vitrais que permitiam a entrada de luz colorida e criavam um ambiente espiritual inigualável.
O bispo Maurice de Sully foi o principal responsável por iniciar o projeto ambicioso, que levou quase dois séculos para ser concluído. A nave principal, as duas torres da fachada oeste e a maior parte da estrutura foram finalizadas no final do século XIII, enquanto os trabalhos nas capelas e na decoração continuaram até o início do século XIV. Com 130 metros de comprimento, 48 metros de largura e torres que se elevam a 69 metros, Notre-Dame foi uma das maiores catedrais da Europa em seu tempo. As inovações arquitetônicas vistas na igreja estabeleceram novos padrões para a construção de catedrais góticas: por exemplo, os contrafortes voadores, introduzidos no final do século XIII, foram uma solução engenhosa para suportar as paredes altas e os telhados pesados, permitindo que a estrutura fosse mais leve e espaçosa. Esses contrafortes, combinados com os vitrais e as rosáceas, transformaram a catedral em um espaço que parecia transcender a gravidade terrestre, apontando diretamente para o divino.
Durante a Idade Média, Notre-Dame – como muitas catedrais de grandes cidades – não era apenas um local de culto; era o centro da vida parisiense em uma sociedade que se organizava largamente em torno da religião. Ali, celebravam-se grandes eventos religiosos, como coroações e funerais reais, além de festividades populares. A catedral também era um importante centro educacional, ligado à Universidade de Paris, que se destacava como um dos grandes polos intelectuais da Europa. O coração da catedral era, e ainda é, o altar-mor, onde missas solenes e celebrações litúrgicas eram realizadas. Um dos eventos mais notáveis da história de Notre-Dame foi a coroação de Henrique VI da Inglaterra como rei da França, em 1431, durante a Guerra dos Cem Anos. Mais tarde, em 1455, a catedral sediou o julgamento que reabilitou a memória de Joana d’Arc, canonizada séculos depois.
Com a chegada do Renascimento no século XVI, o estilo gótico de Notre-Dame começou a ser visto como antiquado. Modificações foram feitas para adaptar a catedral às tendências arquitetônicas e artísticas da época. Algumas decorações originais foram removidas ou substituídas, e novas capelas foram adicionadas. O declínio da catedral começou a se acentuar durante o século XVIII, especialmente após a Revolução Francesa, quando monumentos, locais e arte religiosa de maneira geral foram, por certo tempo, malvistos e em várias ocasiões destruídos. Notre-Dame foi particularmente maltratada. Símbolo da monarquia e da Igreja, que estavam no centro das críticas revolucionárias, a catedral foi saqueada e vandalizada. Muitas das estátuas que decoravam sua fachada foram completamente destroçadas, incluindo os reis da Galeria dos Reis, erroneamente identificados como monarcas franceses em vez de figuras bíblicas e decapitadas por multidões. Os sinos, com exceção do maior, Emmanuel, foram derretidos para fazer balas de canhão, e a catedral foi saqueada, usada como armazém e até renomeada como Templo da Razão.
Assim, no início do século XIX – quando Victor Hugo nasceu e no período em que cresceu – Notre-Dame estava em estado de abandono. Durante o período napoleônico, foi restaurada ao seu status de catedral, mas sua importância cultural havia diminuído drasticamente. Sua estrutura estava deteriorada, com rachaduras nas paredes, gárgulas danificadas, e boa parte de seus tesouros litúrgicos e decorativos roubados e destruídos, incluindo os sinos, cujo ferro tinha sido largamente utilizado para fabricar armas. Alguns planos de reformas mal planejadas tinham descaracterizado parte de sua arquitetura gótica, e as intervenções arquitetônicas feitas até então tinham sido largamente desastrosas. O futuro da catedral era uma incógnita, e havia planos de demolição – pois era largamente vista como um edifício ultrapassado e sem utilidade.
A alma da cidade, os sinos de Notre-Dame: como Victor Hugo salvou – e construiu – um monumento
Foi nesse contexto que Hugo publicou seu romance Notre-Dame de Paris, em 1831.
Victor Hugo era profundamente apaixonado pela arquitetura gótica. Ele via as catedrais como “livros de pedra”, onde a história e os valores de uma sociedade eram registrados para a posteridade. Hugo acreditava que a arquitetura era a expressão mais pura da alma de um povo, especialmente na Idade Média, quando monumentos como Notre-Dame haviam sido erigidos com esforço coletivo e profundo significado espiritual. Hugo estava particularmente alarmado com o estado de degradação de Notre-Dame. Em um artigo publicado em 1825, intitulado Guerre aux démolisseurs (Guerra aos Demolidores), ele denunciou a destruição desenfreada de monumentos históricos na França, que ele atribuía a um desprezo crescente pelo passado em nome do progresso. Esse ensaio foi um prenúncio do que viria a ser Notre-Dame de Paris, uma obra que não apenas denunciava o abandono do patrimônio cultural, mas também celebrava o gênio humano que havia criado tais obras.
Quando Notre-Dame de Paris foi publicado, seu impacto foi imediato e profundo. O romance combina uma trama envolvente com descrições vívidas da catedral, apresentando-a não apenas como cenário, mas como personagem central. Hugo abre o romance com uma meditação sobre a palavra grega ananké (destino ou necessidade), que ele afirma ter sido gravada nas paredes da catedral. Essa imagem inicial estabelece o tom para o papel de Notre-Dame na narrativa: ela é um símbolo do inevitável, uma testemunha silenciosa do fluxo da história. A história de Quasímodo, Esmeralda e Frollo é profundamente ligada à catedral, que serve como refúgio, palco e cúmplice de seus dramas. Hugo descreve Notre-Dame com uma riqueza de detalhes que era inédita na literatura da época, e essas descrições funcionam como um apelo ao público para valorizar o monumento. Ao longo do romance, Hugo explora a beleza e a grandeza da arquitetura gótica, lamentando as alterações que haviam prejudicado a integridade da catedral. Ele não se limitou a criar um enredo cativante; ele transformou o livro em um manifesto para salvar Notre-Dame.
Antes da publicação do romance, Notre-Dame era vista por muitos como uma relíquia decadente de um passado que a França pós-revolucionária queria deixar para trás. Hugo, no entanto, apresentou a catedral como um símbolo da identidade cultural francesa, uma testemunha silenciosa da história do país e um monumento que precisava ser preservado. Funcionou: O livro reacendeu o interesse do público pela catedral, retratando-a como um símbolo da história e da identidade francesa. Seu impacto do romance foi tão significativo que, em 1844, o governo francês do Rei Luís Filipe encomendou uma grande restauração de Notre-Dame, liderada pelo arquiteto Eugène Viollet-le-Duc. Viollet-le-Duc não se limitou a restaurar Notre-Dame ao seu estado original; ele reinterpretou elementos da arquitetura gótica, adicionando sua própria visão ao projeto. Essa restauração foi monumental, envolvendo a reconstrução de gárgulas, estátuas e detalhes decorativos, além da adição da icônica flecha, que se tornaria uma das características mais reconhecíveis da catedral. Embora isso tenha gerado debates entre historiadores e críticos, sua obra devolveu à catedral grande parte de sua grandiosidade, garantindo sua sobrevivência para as gerações futuras.
Talvez o maior legado de Notre-Dame de Paris seja exatamente esse: sua influência direta na preservação da catedral. Quando Hugo escreveu o romance, Notre-Dame estava em estado de abandono, marcada por anos de negligência e vandalismo; seu sucesso imenso, tanto na França quanto internacionalmente, reacendeu o interesse público pela catedral, transformando-a em um símbolo nacional que precisava ser protegido. O projeto de restauração liderado por Eugène Viollet-le-Duc, que devolveu à catedral parte de sua glória perdida, só foi aprovado por conta da grandiosa obra de Hugo.
Essa não foi a última vez que Victor Hugo efetivamente moldou a história da França e a compreensão geral de muitos sobre seus símbolos e mitologia – leia aqui sobre como Os Miseráveis foi singular responsável pela condução da Revolta de 1832 ao papel mitológico que tem hoje na história francesa – mas foi, certamente, a mais importante. O Corcunda de Notre-Dame conseguiu praticamente sozinho criar a catedral como um símbolo de Paris e, assim, lhe transformar de fato na alma da cidade. Os detalhes vívidos e as descrições apaixonadas de Hugo fizeram com que os leitores enxergassem Notre-Dame não apenas como um edifício, mas como um testemunho vivo da história francesa – algo particularmente valioso quando considerava-se a situação em que o paós estava então.
A Catedral pós-Victor Hugo é, mais do que nunca, um marco de Paris. Ao longo do século XX, Notre-Dame continuou a desempenhar um papel central na história francesa, voltando a ser o centro de grandes eventos que era no medievo. Foi o local de eventos importantes, como a Te Deum de ação de graças pela libertação de Paris na Segunda Guerra Mundial e o funeral do general Charles de Gaulle, em 1970. A catedral também atrai milhões de visitantes anualmente, tornando-se uma das atrações turísticas mais populares do mundo. Seus sinos, especialmente o Emmanuel, continuaram a tocar em ocasiões solenes, marcando momentos de celebração e luto. Hugo, portanto, não apenas escreveu um romance; de fato, nem apenas salvou um monumento: ele, sozinho, criou uma lenda. Victor Hugo não é apenas um gigante na cultura e história francesas: ele é um de seus idealizadores.
Ao transformar Notre-Dame em protagonista de sua narrativa, Hugo ajudou a construir o imaginário coletivo em torno da própria catedral, hoje impossível de divorciar de sua criação. A visão do sineiro Quasímodo pendurado nas torres, a fuga desesperada de Esmeralda e as descrições vívidas das gárgulas e vitrais tornaram-se parte da memória cultural de gerações de leitores. Para boa parte do mundo, a imagem mental de Notre-Dame não vem de fotografias ou visitas, mas das palavras de Hugo.
Mais do que construir a imagem da catedral, porém, Notre Dame de Paris conseguiu utilizar a catedral para construir a imagem da França. Se antes de Hugo Notre-Dame era apenas mais um monumento religioso, após Notre-Dame de Paris, a catedral tornou-se um símbolo nacional. Hugo não apenas resgatou a catedral do esquecimento, mas também a elevou ao status de emblema da identidade francesa que independe de qualquer questão política e religiosa e relaciona-se sobretudo com a alma da nação enquanto mitologia. Em um período de intensas transformações políticas e sociais, Notre-Dame tornou-se um ponto de referência estável, um lembrete das raízes históricas e culturais do país. Hugo conseguiu fazer de Notre-Dame um símbolo universal.
Essa construção literária também influenciou outras formas de arte. Ao longo dos anos, Notre-Dame de Paris inspirou inúmeras adaptações, desde óperas até filmes e musicais. Os mais famosos incluem diversas adaptações cinematográficas, uma das mais conhecidas com Salma Hayek no papel de Esmeralda; um desenho animado da Disney, considerado uma das melhores produções da história do estúdio, e um musical derivado, estrelando grandes nomes do teatro como Patrick Page, Michael Arden e Ciara Renée; e o musical francês internacionalmente aclamado e até hoje em cartaz “Notre Dame de Paris”, com nomes como Garou e Bruno Pelletier em seu elenco. Cada adaptação reforçou a associação entre a catedral e a narrativa de Hugo, consolidando sua posição como um dos marcos mais reconhecidos e reverenciados do mundo.
No santuário da alma francesa, os sinos da memória dobram
Que o desenho animado “O Corcunda de Notre Dame”, produzido pela Disney na década de 90, é uma coisa que jamais irá se repetir, todos sabem; que é um dos melhores filmes já feitos pelo estúdio, com um nível de profundidade intelectual, discurso político e, em termos simples, coragem artística que dificilmente será visto outra vez em um filme animado infantil do segmento, também. E boa parte dessa qualidade está em sua música – com a canção “The Bells of Notre Dame” (Os Sinos de Notre Dame) sendo considerada quase que unanimemente pela crítica a melhor abertura de desenho animado já produzida na história. Logo em suas primeiras estrofes, a letra sentencia: “dizem que a alma da cidade é o som dos sinos de Notre Dame”. Isso é obra e mérito de Hugo.
Um dos aspectos mais fascinantes de Notre-Dame de Paris é como Hugo utiliza a catedral para explorar temas históricos. O autor não se contenta em narrar uma história; ele mergulha no contexto da Paris do século XV, descrevendo com detalhes impressionantes a vida cotidiana, as tensões políticas e os costumes sociais da época. A catedral, como símbolo de estabilidade e continuidade, torna-se um ponto de referência em um mundo em constante transformação, com a riqueza cultural e social do medievo francês. Victor Hugo também destaca o papel de Notre-Dame como local de encontros e confrontos. Seja em suas escadarias, onde multidões se reúnem, seja em suas torres, onde Quasímodo trava batalhas pessoais, a catedral é o epicentro das dinâmicas sociais e individuais. Nela ocorrem revoltas, protestos, julgamentos, festivais. Ela é o lugar onde as esperanças e os medos de uma cidade inteira são amplificados, refletindo a grandiosidade e a fragilidade da condição humana. No papel e na vida.
Notre-Dame de Paris é, antes de tudo, uma obra sobre memória. A memória de um povo, de uma cidade e de uma época está encapsulada na catedral que Victor Hugo tão magistralmente transforma em protagonista. Memória enquanto tema narrativo – uma construção dentro da história escrita por Hugo – e memória enquanto realidade material – a construção de memória feita na vida real pelo romance dentro da história francesa. Ao escrever seu livro, Hugo não apenas resgatou Notre-Dame da obscuridade, mas também deixou para o mundo um lembrete poderoso de que a cultura, a história e a arte são inseparáveis da identidade de uma nação. Ele não encantou, simplesmente, seus leitores: os mobilizou, transformando a literatura em uma ferramenta viva de preservação cultural. E, em meio a tudo isso, ele se fez Victor Hugo – o Grande Victor Hugo que anos depois ameaçaria governos inteiros com pena e papel.
Hoje, é impossível imaginar Notre-Dame sem pensar em Hugo, assim como é impossível pensar em Hugo sem lembrar de Notre-Dame. Juntos, eles continuam a inspirar, a emocionar e a lembrar-nos da importância de preservar nossa herança cultural para as gerações futuras. Para entender a relevância contínua da catedral de Notre-Dame, é essencial começar com este romance, que continua a inspirar gerações com sua beleza e sua mensagem atemporal. E agora que a catedral mais uma vez renasce, ressurgindo como um símbolo de permanência na França cinco anos após seu incêndio histórico, com Emmanuel mais uma vez soando orgulhoso – como o fez para Napoleão, como o fez para Joana D’Arc -… por que não mergulhar nele pela primeira, ou milésima, vez?