Vencedor de 4 prêmios no Festival de Cannes, thriller histórico ‘O Agente Secreto’ é cinema político que surpreende e coloca filme brasileiro ao lado de grandes lançamentos de 2025 na categoria, como ‘Pecadores’ e ‘Uma Batalha Após a Outra’.
Somente a figura do opressor é submetida à violência extrema nos filmes de Kleber Mendonça Filho. Não significa que os oprimidos sejam poupados de sofrimentos e de morte, mas o seu padecer não é tão explícito quanto o de seus antagonistas. Essa constante estilística, observada nos seus dois últimos trabalhos, imprime um traço de reparação social e histórica que sobreleva a dor causada pela opressão, mais do que vista, ela é sentida e prolongada pela memória.
O Agente Secreto, seu aclamado longa de 2025, uma das obras mais aplaudidas na história do Festival de Cannes, é justamente sobre dores ocultadas que persistem pela memória e pela resistência.
Ainda que as escolhas do diretor se justifiquem pela exaltação daqueles que lutam para não serem apagados da história, seu estilo já foi bastante questionado. A estrutura dividida em prólogo e três capítulos de duração desigual, em que as duas primeiras partes são muito mais longas que as últimas, já lhe rendeu críticas por atrasar a apresentação do objeto principal da trama, fator evidente em Aquarius (2016) e Bacurau (2019).
Entretanto, em O Agente Secreto, essa divisão de roteiro é validada pela densidade que o longa obtém desses começos extensos enquanto thriller histórico com cores locais muito bem destacadas.
O mistério é um elemento importante nas tramas de Mendonça Filho. Por isso, suas introduções se estendem ao máximo para envolver o espectador no emaranhado de acontecimentos e situações adversas que se desenrolam em panoramas sociais sempre complexos.
À medida que o tempo avança e a narrativa se torna mais densa, cresce também a familiaridade com o contexto e com os personagens. É recomendável, nesse sentido, assistir ao filme com o mínimo de informação prévia: assim, a experiência se conduz pelos próprios personagens, e as descobertas se dão sob a sua perspectiva.
Em O Agente Secreto, sabemos apenas que Marcelo, protagonista interpretado por Wagner Moura, está em uma viagem de três dias em seu Wolks, como se referem ao Fusca no filme, de volta para Recife, sua cidade natal. É o Carnaval de 1977 e os jornais noticiam os saldos de morte das festividades. Isso é tudo que fica claro sobre a história. O motivo da sua volta a Pernambuco e por que, ao invés de retornar à sua casa e à sua família, vai morar em uma espécie de refúgio são questões que ficam em aberto e vão sendo respondidas à medida que, junto ao personagem, vamos conhecendo os outros carismáticos refugiados, ainda que eles não gostem de ser chamados assim.
Se a trama se apresenta enigmática, o contexto histórico e político do fim dos anos 1970 dá a saber que há algo fora do lugar, que Marcelo está sendo perseguido e que esse talvez nem seja seu verdadeiro nome. Prevalece o mistério enquanto nos convencemos da decência do protagonista e, como ele, nos deixamos cativar por figuras como dona Sebastiana (Tânia Maria), espécie de administradora da casa dos refugiados, e criamos aversão por outras, como o delegado Euclides (Robério Diógenes), além de nos habituarmos à Recife de 1977.
Reconstrução histórica é um grande desafio técnico que o cinema brasileiro domina muito bem, haja vista o prestígio internacional dos filmes mais aclamados dos últimos anos. Assim como Ainda Estou Aqui (2024, Walter Salles), O Agente Secreto se passa na ditadura, com um fator ainda maior de complexidade: a história acontece onde a opressão é velada. Tanto que o ápice da tensão se dá no Cine São Luiz, cinema de rua inaugurado em 1958 em Recife e que, inclusive, recebeu a pré-estreia do filme. Os momentos da perseguição que acontecem nesse local podem lembrar das cenas icônicas de Bastardos Inglórios (2009), que também se passam em um cinema em contexto de reparação histórica.
É curioso perceber como certas temáticas parecem atrair grandes cineastas em períodos que coincidem, fazendo com que suas obras revelem um certo alinhamento. Em 2025, por exemplo, outro grande filme sobre opressão e resistência foi lançado por Ryan Coogler. Pecadores, apesar de todas as diferenças de linguagem, estética e gênero, também é um filme sobre indivíduos que, marginalizados pela história, voltam para casa, mas acabam perseguidos e subjugados por uma força dominante que deseja apagar sua identidade.
Em 2019, Bacurau, que Mendonça Filho dirigiu e escreveu em parceria com Juliano Dornelles, também estabeleceu alguns paralelos com o último filme de Tarantino, Era uma Vez em… Hollywood, lançado naquele mesmo ano: ambos promoviam a redenção dos injustiçados da história por meio da violência extrema infligida aos opressores.
Esse alinhamento entre grandes diretores revela o espírito do tempo, algo a que artistas legítimos são particularmente sensíveis. Não por acaso, o cinema brasileiro dos últimos anos tem sido criticado devido a um suposto hiperfoco na ditadura. No entanto, hoje é necessário e urgente resgatar a memória e revisitar os conceitos de opressão e resistência.
Essa urgência é articulada em uma das metáforas mais competentes de O Agente Secreto em uma cena em que um cadáver, recém atingido por um tiro, é coberto por um jornal que estampa uma notícia estapafúrdia. Como se pode visualizar, a função da mídia na época era, muitas vezes, ocultar ao invés de revelar a verdade.
Por esses e vários outros fatores, O Agente Secreto é o resultado de um trabalho em que Kleber Mendonça Filho não precisou se ajustar para garantir o apreço do público e da crítica internacional. Pelo contrário, ele amadureceu os seus já conhecidos recursos autorais, mas agora os apresenta em um momento em que vários fatores externos contribuem para que o seu cinema seja apreciado em todas as suas dimensões.
Em 2016, o protesto que a equipe de Aquarius fez no Festival de Cannes contra o impeachment de Dilma Rousseff inevitavelmente dispersou o interesse do filme para a manifestação política. Em 2019, o hype em torno de Bacurau era em grande parte impulsionado pelo público que tinha se entusiasmado com as polêmicas de 2016 e queria aquecer o debate político proposto pelo longa, contudo, foi um movimento restrito. Em 2025, entretanto, o mundo e, sobretudo, o próprio público brasileiro têm interesse e expectativas maiores sobre o cinema do país.
Além disso, assim como dizem que, em 2015, Alejandro González Iñárritu escreveu e dirigiu O Regresso com todos os detalhes pensados para que Leonardo DiCaprio ganhasse o Oscar, é lícito pensar que Mendonça Filho fez algo parecido em relação a Wagner Moura. O diretor abertamente fala que há anos queria trabalhar com o ator e que o enredo e papel foram construídos sob medida para ele. E neste momento, em que finalmente a parceria acontece, o ator baiano vive sua melhor fase: é um intérprete consagrado, carismático e, nas palavras do diretor pernambucano, “um verdadeiro astro internacional”. E, certamente, aqui ele entrega a atuação mais poderosa da sua carreira.
Gerou-se, novamente, um frenesi entre os brasileiros em torno das possíveis indicações e vitórias que O Agente Secreto pode alcançar no Oscar. Até agora, especula-se que o principal adversário de Wagner Moura na disputa por melhor ator é ninguém menos que Leonardo DiCaprio. Curiosamente, o protagonista de Uma Batalha Após a Outra (Paul Thomas Anderson, 2025) fez recentemente uma declaração que responde, de certo modo, às críticas sobre o cinema insistir em temas difíceis da história. Ele contou que, certa vez, ao ter dificuldade em lidar com o sofrimento que um papel exigia, um grande diretor o lembrou de que “a dor passa, mas o filme dura para sempre”.
Em suma, O Agente Secreto e sua aclamação internacional nos lembram disso: os períodos sombrios da nossa história passam, mas as grandes obras, como esse filme, são eternas.
Minha nota para O Agente Secreto no Letterboxd: 4 estrelas.
O Agente Secreto (2025)
Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho
Duração: 2h38.