“Faça de tudo para não precisar da coragem”, Fábio Franco volta às memórias de Aracaju para (re)construir as dores de cada um de nós

Todo conto é uma coragem. Sempre acreditei que um escritor para se debruçar no mergulho do gênero conto, ele tem de estar tomado por uma espécie de desapego que se aproxima da loucura ou do delírio. Como pode alguém ter uma ideia e aceitar perdê-la assim tão rápido, em poucas páginas? Como pode aceitar desapegar de sua joia tão rápido, só pelo prazer de ver seus personagens serem ali sepultados tão rápido, para nunca mais? Deve dar uma sensação de poder de conquista ou até uma soberba de controle do mundo por acreditar que de sua cabeça sempre haverá histórias nascendo, e mais outras e mais outras…não sei. 

Talvez seja o contrário…o autor de conto tem medo, tem medo de levar as histórias longe demais e descobrir que elas não satisfazem o suficiente, que não têm para onde ir, são medonhas, medíocres e escondem personagens tacanhas…Afinal, o que será? Não se pode saber, não assim, de repente, mas estive diante de uma série de passeios sobre o gênero conto e fui despertado para essa discussão pelo sensacional livro Faça de Tudo Para Não Precisar de Coragem, de Fábio Franco. 

Com este título profundamente evocativo, somos convocados a entrar nesta obra de contos curtos publicada pelo autor em 2024 pelo selo Cachalote da editora Aboio e semifinalista do Prêmio Jabuti em 2025. Em Faça de Tudo Para Não Precisar de Coragem, e isto está presente tanto na orelha quanto na sinopse – mas é preciso repetir aqui porque é realmente uma recorrência da obra – Fábio vai traçar e retraçar memórias de uma Aracaju através de suas lembranças agora como um morador da cidade do Rio de Janeiro. 

Para isso, cabe dizer que, na maioria dos 14 contos do livro, a Aracaju que existe para nós leitores é uma cidade atravessada por uma instância inescapável: A Aracaju que lemos não é uma cidade real, palpável, mas uma capital construída pela memória de Fábio agora no presente, uma infância modulada por uma memória construída pela distância do autor agora no Rio de Janeiro. Assim, infância, memória e cidade são a tríade essencial que modulam a estrutura da obra. 

Uma vez vista de cima essa cartografia de Faça de Tudo Para Não Precisar de Coragem, quero voltar para os afetos que o livro me mobilizou. O título do livro desperta uma série de reflexões filosóficas e afetivas logo no primeiro conto. Vamos lá.


O título do livro evoca a ironia de que é preciso um esforço para que não se tenha coragem. A coragem não é, necessariamente, uma ação, mas a consequência que escapa após um esforço para evitá-la. Para Fábio Franco, a bravura está na fragilidade. No primeiro conto intitulado Menino quebrado, o autor aposta na delicadeza e vulnerabilidade.

Nele, um menino chamado Daniel acorda para seu primeiro dia em uma escola militar e tanto seu pai quanto sua mãe demonstram um olhar receoso. Com apenas 5 anos, mas já tendo seu corpo corrigido, vigiado, moldado e gerido para agir de forma “correta” e “militar”, o que quer que isso signifique, o menino estranha. Em determinado momento, Fábio escreve:

“Daniel precisava da voz de alguém para guiá-lo. Ao longo do desfile, cada vez mais firme, notou os olhos da mãe: olhos que procuram algo. Viu a mãe analisá-lo como algum objeto quebrado. Quem sabe tivesse vindo mesmo com defeito e os pais, sendo os criadores, se sentiam responsáveis.”

Ao pensar na fragilidade deste jovem, podemos aproximar de algumas outras minorias como os grupos LGBTs+.  Lembro do clássico manifesto “Falo pela minha Diferença”, do chileno Pedro Lemebel, no qual ele também fala ter nascido “quebrado”, mas com uma “asa quebrada”, mas que anseia que todas as revoluções, principalmente as de esquerda, incluam um espaço para esses seres que nascem meio “quebrados”:

“Ao senhor dou esta mensagem
E não é por mim
Eu estou velho
E sua utopia é para as futuras gerações
Há tantos meninos que vão nascer
Com uma asinha quebrada
E eu quero que eles voem, companheiro”

Um outro conto que se destaca no livro é Uma tarde de domingo, cuja descrição que dá título ao conto modula simultaneamente uma casa de classe média com uma menina em passagem para a adolescência deitada numa rede aparentemente abandonada ali pela família que adormecia pelos cantos. 

Escritor Fábio Franco

Ao se reconhecer sozinha, Olivia passará por uma espécie de epifania ao fazer uma “descoberta do mundo”, talvez nos moldes clariceanos”, diante da figura de uma mendiga que fuça o lixo em frente de sua casa. Fábio, inteligentemente, nos antecipa este gesto enquanto ainda está descrevendo a casa criando um contraste, uma ambivalência forte para essa tarde de domingo de Aracaju, entre uma classe média e uma esfomeada. Artimanhas de um grande contista. Diz ele:

“Pode-se dizer que alguém cresce não com a idade ou com o tamanho, mas quando deixa de ver a rede como um lugar onde se pode balançar”. 

Eis que a rede será, para Olivia, diversos lugares. Primeiro, aquele lugar de conforto, em que “Olivia espera pelas coisas que estavam esperando por ela”. Em seguida, ao ver a “mendiga” enfiar a cara em uma sacola de lixo, a rede vira refúgio para se esconder da imagem e tentar dormir. Não consegue. Assim, as duas encaram-se e viram como espelhos desconexos uma da outra:

“Por um segundo, elas eram o segredo uma da outra. A famosa brincadeira de criança: encarar e não rir, encarar e não rir. a tensão cada vez mais forte, até que a mendiga não suportou mais:
Você quer um pedaço?”

Por fim, talvez o melhor conto do livro, Fina como uma faca, que já abre com uma frase de grande impacto: “O que é frígida, mãe?”, a qual me remeteu à novela do grande escritor argentino Cesar Aira que em A Prova começa com a pergunta “Quer foder?”, causando impacto similar. 

No entanto, dessa vez, estamos diante de um filho perguntando para uma mãe. E mais, diante de um filho que pergunta para uma mãe que tenta dissimular a pergunta porque imagina, em seus piores pesadelos de onde pode ter vindo tal questão. Tal como em um conto de terror, a mãe tenta adiar a morte e, aterrorizada, adia a pergunta do filho obstinado.

Eis que o passado mergulha no presente como enxurrada transformada cada frase inocente do filho em um turbilhão furioso que arranha e arranca da mão o pouco de dignidade que lhe restava. Fábio transforma, aqui, inocência em violência. 

Em Faça de tudo para não precisar da coragem, estamos diante de uma obra de pequenos robustos escritos de Fábio Franco, que parecem terem sido trabalhados minuciosamente prevendo com atenção gestos e impactos em seus leitores. Como roteirista de cinema, talvez Fábio domine a tarefa dos cortes entre diálogos e cenas, mas não gosto de especular porque acredito que todos os textos são igualmente iguais e diferentes. 

Entretanto, a sensação que temos é mesmo dessa brevidade de uma memória da infância recuperada agora que já não se está lá, mas reminiscente de quem já está com a maturidade e visão de agora. Um grande livro para quem gosta de contos. E para quem quer gostar também.

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