A montagem teatral “Projeto Clarice”, dirigida por César Ribeiro, é uma notável adaptação cênica de cinco contos da aclamada Clarice Lispector: ‘A Via Crucis’, ‘Menino a Bico de Pena’, ‘Legião Estrangeira’, ‘Amor’ e ‘O Ovo e a Galinha’. Embora os textos sejam de coletâneas distintas, a direção demonstra uma habilidade magistral em entrelaçar esses fragmentos narrativos. O resultado permite ao público uma compreensão das histórias de forma conjunta e individual, facilitando a entrada no universo clariceano de forma lúdica.
A proeza de transformar a essência literária em espetáculo cênico é ainda mais admirável quando consideramos a natureza dos textos de Clarice. Apesar de utilizar uma linguagem de vocabulário simples, suas frases se desdobram em um conjunto que nos transporta para as mais complexas metáforas e simbolismos. Essa obra-prima da literatura brasileira é marcada pela subjetividade e pelo profundo intimismo, exigindo do leitor uma interpretação reflexiva. Tais características são transmitidas na peça com uma fluidez notável, estabelecendo uma linearidade que convida o espectador a se perder no universo da narrativa.
Na cenografia, a repetição de elementos visuais é de extrema importância para a coesão dos contos. As referências funcionam como uma espinha dorsal que unifica a linha narrativa, dando sentido à ligação entre as histórias: a imagem do ovo, o tema do feminino e a reiteração do vocábulo “amor” servem como guias conceituais ao longo da peça.
É fascinante observar as escolhas estéticas de César Ribeiro, que inteligentemente mescla realismo e simbolismo, antigo e atual, criando uma dicotomia cênica singular e instigante. Duas horas se passam sem que se perceba a passagem do tempo, atestando o completo e perfeito estabelecimento de um pacto ficcional. A epifania, marca registrada da obra de Clarice, está intensamente presente, especialmente no conto ‘Amor’, interpretado com maestria por Clara Carvalho, que revela toda a força e a fragilidade de sua personagem.
A direção de César destaca o protagonismo feminino, com as atrizes Clara Carvalho, Magali Biff, Mariana Muniz e Vera Zimmermann dando vida às personagens de Clarice. Elas interagem ora sozinhas, ora em conjunto, e esses momentos de interação revelam a sintonia do elenco e o inegável domínio técnico de palco. Um destaque especial deve ser dado a Mariana Muniz, cuja partitura corporal é impecável e a potência vocal, inquestionável. Desafio o leitor desta crítica a desviar o olhar quando ela está em cena, pois seu impacto é tão grande que tal feito se torna praticamente impossível.
Em contraste, os homens se fazem presentes, mas não visíveis, representados de maneira simbólica, usam máscaras, o que remete a outro universo clariceano: o universo da infância. A peça se configura, assim, como uma ode ao universo feminino, explorando temas existenciais de memória e vivência, e transitando pelas múltiplas fases e questões da mulher: da inocência e curiosidade da infância ao medo e conformismo da vida adulta.
Por fim, mas não menos importante, o cenário é construído de maneira engenhosa e interativa para compor as cenas. As construções de imagem beiram as artes plásticas, tamanha a atenção dedicada ao visual da montagem.
“Projeto Clarice” é uma homenagem positiva e vibrante à memória de Clarice Lispector, com uma direção e atuações dignas de todos os elogios. Esta peça é particularmente recomendada para aqueles que buscam uma reflexão profunda sobre o universo feminino e a complexidade da condição humana.
FICHA TÉCNICA
textos: Clarice Lispector
direção, adaptação e trilha sonora: Cesar Ribeiro
atuação: Clara Carvalho, Magali Biff, Mariana Muniz e Vera Zimmermann
atores-contrarregras: Pedro Conrado e Eneas Leite
cenografia: J. C. Serroni
figurinos: Telumi Hellen
iluminação: Rodrigo Palmieri
visagismo: Louise Helène
assistente de produção e de visagismo: Matheus Sabbá
produtor executivo: Jarbas Galhardo
direção de produção: Marisa Medeiros
coordenação de produção: Edinho Rodrigues
Realização: Garagem 21, Brancalyone Produções, Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Governo Federal, Ministério da Cultura e Lei Aldir Blanc