Embora Drácula seja hoje o modelo pelo qual todo vampiro é medido, o vampiro teve e ainda tem muitas encarnações que variam imensamente de acordo com a época e o local onde a lenda está sendo contada. De maneira geral, porém, pode-se afirmar que contos de terror e horror, e o vampiro em particular, são sempre uma representação do outro, do desconhecido e, acima de tudo, da ameaça ao status quo, à cultura dominante ou aos hábitos e ideologias vigentes.
Sua criação fundamentada nos medos e preconceitos de uma sociedade – o monstro em qualquer livro de horror, de maneira geral, é aquilo que há de externo, indesejável e perigoso dentro do mundo no qual está sendo escrito, e sua função temática máxima sempre é apresentar uma ameaça de subversão ao status quo vigente, com o objetivo final sendo derrotar essa ameaça – ser simultaneamente municiada para a formação ideológica de uma sociedade, reforçando aquilo que deve ser temido e ostracizado; utilizada como forma de representação dos medos e ansiedades já presentes dentro dessas sociedades, servindo como externalizações de preocupações que já tomam conta do imaginário contemporâneo; e, em outros casos, utilizada para efetivamente subverter preconceitos (sobretudo em versões modernas em que o monstro não é apresentado como tal e sim humanizado em sua exteriorização).
O ponto, enfim, é que vampiros, de diferentes maneiras, representam o potencial de subversão do status quo e das classes e ideologias dominantes: o vampiro vai despertar a sexualidade de puras e inocentes jovens mulheres; o vampiro envolverá homens e mulheres em relações homossexuais; o vampiro é o estrangeiro que vai corromper sociedades brancas; o vampiro é o antiquado que vem se aproveitar parasiticamente daquilo que é avançado e atual; o vampiro, em resumo, é uma ameaça externa ao funcionamento interno de uma sociedade.
Assim, o vampiro vitoriano não representa nada mais, nada menos do que o estrangeiro bárbaro e pouco civilizado – vide, oriental e medieval, o grande horror dos vitorianos -, lascivo e perigoso que pretende invadir a sociedade inglesa para corromper seus costumes, seduzir suas mulheres e literalmente consumir aquilo que o país tem de melhor a oferecer (aqui cabe citar o fato de que, em muitas versões de histórias de vampiros, o sangue consumido tem propriedades que passam para o consumidor, de forma que, ao tomar o sangue de alguém que fala inglês, o vampiro passa a falar inglês com menos sotaque, etc etc) de maneira parasítica e predatória. Isso, afinal de contas, era o grande pavor do século XIX.
Nacionalismo e neocolonialismo na Europa do século XIX:
O século XIX viu o nascimento do nacionalismo como um conceito tangível que surge após a Revolução Francesa. Esse nacionalismo viria a se tornar uma faceta definitiva dos anos 1800, levando, eventualmente, para a Primeira Guerra Mundial em 1914. Ao mesmo tempo, o período entre 1789-1914 foi um marcado pelo neocolonialismo, com o historiador Eric Hobsbawm descrevendo-o como “a era dos impérios” em função da corrida colonial que se deu então, com as grandes potências europeias – a Inglaterra principalmente, mas também a Alemanha, a França, a Rússia e, em menor medida, a Itália e a Áustria-Hungria competindo entre si para tomar conta de territórios vizinhos e estrangeiros.
O neocolonialismo europeu do século XIX foi sustentado por uma complexa combinação de ambição econômica, supremacia militar e justificativas culturais profundamente arraigadas. A expansão imperial foi frequentemente apresentada como uma missão civilizatória, na qual as potências europeias se viam como portadoras da iluminação e do progresso para regiões que consideravam atrasadas ou bárbaras. O orientalismo, conceito mais tarde desenvolvido por Edward Said, explica como os europeus criaram uma visão simplificada e estereotipada do Oriente, vendo-o como misterioso, exótico e perigoso, e, ao mesmo tempo, atrasado e bárbaro. Essa percepção distorcida não só alimentava as políticas coloniais, mas também influenciava as narrativas literárias e artísticas da época.
Dentro da própria Europa, a xenofobia também se manifestava com força. A Revolução Industrial provocou um deslocamento em massa de populações, tanto internas quanto externas, com migrantes se mudando para cidades industriais em busca de melhores condições de vida. Isso criou tensões entre populações locais e imigrantes, que eram frequentemente percebidos como competidores por empregos e recursos escassos. Grupos específicos, como judeus e ciganos, enfrentaram discriminação sistemática, sendo vistos como ameaças culturais e econômicas. A xenofobia na Europa do século XIX foi agravada pela ascensão do nacionalismo já comentado. Em um momento em que as identidades nacionais estavam sendo consolidadas, com países como a Itália e a Alemanha finalmente se tornando unificados apenas na segunda metade do século, qualquer elemento externo era visto como uma ameaça à homogeneidade cultural que as elites políticas tentavam estabelecer. Línguas, religiões e costumes diferentes eram frequentemente retratados como sinais de inferioridade ou de subversão.
Essa intolerância não se limitava a nações estrangeiras; minorias dentro de países também eram alvo. Na França, por exemplo, a “questão judaica” dominou o debate público, culminando no caso Dreyfus no final do século XIX, enquanto no Império Austro-Húngaro as tensões étnicas entre alemães, tchecos, eslavos e húngaros eram constantemente inflamadas por políticas de exclusão. O Oriente, em particular, carregava uma carga simbólica na imaginação ocidental. Países como a Rússia e os Bálcãs, considerados na periferia da Europa, eram vistos com uma mistura de fascinação e medo. Os imigrantes provenientes dessas regiões, muitas vezes forçados a se mudar devido a conflitos ou perseguições, encontravam hostilidade nos países para onde iam. As representações de povos do leste europeu em literatura e ciência frequentemente os descreviam como atrasados, perigosos e, paradoxalmente, sedutores, com características que despertavam tanto o desejo quanto o repúdio.
Essas tensões foram exacerbadas pela proliferação de teorias pseudocientíficas, como o darwinismo social, que legitimava a hierarquização de povos com base em características físicas e culturais. Essas teorias justificavam tanto a exclusão social dentro da Europa quanto as práticas imperialistas em outros continentes. Ao longo do século XIX, essa combinação de xenofobia, pseudociência e ambição imperial moldou profundamente a política e a cultura europeia, plantando as sementes para muitos dos conflitos e ideologias que dominariam o século XX, e esse ambiente culturalmente carregado encontrou sua expressão em diversas formas de arte e literatura. Escritores britânicos, franceses e alemães frequentemente retratavam personagens estrangeiros como antagonistas, representando medos coletivos de invasão, contaminação ou subversão. Essas narrativas, muitas vezes permeadas de estereótipos, ajudavam a reforçar preconceitos e a normalizar a exclusão. Elas construíram um imaginário no qual o estrangeiro era simultaneamente uma ameaça e uma figura que precisava ser dominada ou civilizada. É nesse contexto que as histórias populares começaram a explorar os medos relacionados ao “outro”, utilizando metáforas e alegorias para discutir questões sociais e políticas de forma indireta.
Xenofobia e o Leste Europeu:
Quando Drácula foi publicado, a posição da Inglaterra enquanto maior império do mundo já estava em declínio. Embora ainda fosse uma das duas maiores potências da Europa e do mundo – alternando nessa posição com a Alemanha recém-unificada – e dona do mais impressionante império do período e de um dos mais impressionantes da História, a Inglaterra estava rapidamente perdendo espaço e vendo sua influência diminuir na medida em que a Alemanha se tornava cada vez mais proeminente no continente, a Rússia caminhava a passos largos, embora atrasados, em direção à industrialização, e os Estados Unidos se desenvolviam rapidamente “do outro lado do rio”. Após décadas de poder inquestionável, a Inglaterra via sua posição ser minada tanto como líder comercial quanto cultural no mundo, com seu poder e controle sobre suas colônias escapando-lhe lentamente das mãos.
A Rússia, particularmente, era uma fonte de grande preocupação, embora não estivesse nem perto de ter o mesmo nível de desenvolvimento científico e econômico que a Alemanha. Isso se dava em função de seu tamanho gigantesco de proporções continentais, por seu imenso exército – que, embora mal treinado e mal equipado, era uma força a ser considerada em qualquer teatro de guerra europeu simplesmente pelo impressionante número de homens dos quais poderia dispor (enquanto em 1914 o exército inglês dispunha de cerca de 700 mil homens para entrar na Grande Guerra, o russo contava com 4,5 milhões) – e, acima de tudo, por suas diferenças políticas e culturais. A Europa ocidental temia a Rússia, que era percebida como uma potência asiática bárbara e não-civilizada dentro de território europeu – a Rainha Vitória tentou impedir que sua neta Alix de Hesse e Reno (mais tarde Alexandra Feodorovna Romanov) se casasse com o futuro imperador da Rússia em função da “barbaridade” da nação, enquanto o Kaiser Guilherme II fez todos os esforços possíveis para convencer o imperador Nicolau II, seu primo, a “voltar seus olhos para o Leste”, incentivando as pretensões coloniais russas na Manchúria que eventualmente resultaram na desastrosa guerra russo-japonesa de 1904-05, e passar a guiar a Rússia em direção ao oriente, buscando assim que o país se alinhasse com seu lado asiático e deixasse a Europa e sua posição enquanto país europeu de lado.
Isso, até certo ponto, foi uma realidade, na medida em que, apesar de se considerarem europeus e buscarem viver de maneira bastante europeizada – a última família imperial russa se comportava mais como aristocratas rurais ingleses do que qualquer outra coisa -, os últimos dois Czares russos, Alexandre III e Nicolau II, de fato acreditavam que a cultura eslava tinha muito mais relação com o oriente, e empreenderam diversos esforços culturais e estéticos voltados para a “russificação” cultural da Rússia – isto é, a diminuição da influência ocidental trazida por Pedro, O Grande, no hábitos e na estética da Rússia, e sobretudo da capital europeia, São Petersburgo, e trazer de volta as referências moscovitas – ou seja, orientais – do período ruríquida e da Moscóvia anterior ao século XVII. Isso significava ao mesmo tempo um distanciamento cultural, ainda que superficial, da Europa que simultaneamente causava alívio e repulsa no europeu ocidental, e uma mais marcada separação física entre o Leste Europeu e a Europa Ocidental, que mais que nunca se via removida da Rússia e de sua área de influência.
A Rússia e os países do leste europeu sob influência russa (ou, em alguns casos, austro-húngara) causavam imenso desconforto, medo e fascinação na Europa do fim do século XIX, e vários autores europeus, e britânicos sobretudo, viajaram para o império russo com a intenção de escrever sobre sua cultura e sobre os camponeses russos, quase como se estivessem tratando de animais exóticos. O Dr. Kenneth Percy Howard, em 1907, escreveu sobre o mujique – isto é, o camponês russo: “Vamos agora parar de falar da condição do camponês fisicamente, vivendo em sua izba na saúde e na doença, e nos voltar para seu caráter. Eu devo dizer logo que ele é imoral e preguiçoso por excelência; ele não ama nada mais do que ter apenas dinheiro o suficiente ou provisões à mão para permitir-lhe ter uma boa e longa sessão de bebedeira e um sono ainda mais longo”. Isso não é, nem de longe, o pior escrito por autores do gênero nesse período.
De maneira geral, enfim, o Leste Europeu era percebido na Europa Ocidental como por excelência retrógrado, atrasado e inferior, tanto por seus posicionamentos políticos e história cultural bastante particulares quanto em função da pobreza de boa parte de sua população – algo que, por um lado, fazia com que os governos parecessem incapazes, quanto por outro criavam uma cultura bastante enraizada nos hábitos de pessoas pobres e, portanto, imediatamente percebida como menos civilizada em países mais ricos e, sobretudo, por classes mais altas. Para piorar a situação dessa percepção, ainda havia o fato de uma imensa densidade de judeus e ciganos – dois povos diaspórios e historicamente entre os grupos mais universalmente odiados dentro do continente europeu – não apenas residirem no Leste Europeu, mas também com frequência emigrarem de lá para a Europa Ocidental, criando uma noção ainda pior do “imigrante leste-europeu” de maneira geral.
Entra Drácula:
Com tudo isso em mente, falemos de Drácula – um estudo de caso praticamente perfeito em literatura da Europa ocidental no século XIX e sua obsessão com o conceito de colonização reversa, e também o modelo sobre o qual todos os vampiros posteriores foram, de uma forma ou de outra, construídos. Faz total sentido, considerando o contexto em que foi escrito, que o monstro titular de um livro de horror tão informado pelos medos de sua época quanto Drácula seja um monstro do Leste Europeu – isto é, um monstro do oriente na perspectiva de um autor e do público britânico, muito embora a Romênia, país de origem de Drácula, não seja uma civilização eslava, mas latina – que invade o país para tomar conta dele com seus meios bárbaros, medievais e não-civilizados. Faz total sentido, também, que em um contexto em que colonialismo era algo tão presente na mentalidade pública, a noção de um estrangeiro invadindo um país fosse representada pela ideia do invasor tomando conta de uma nação com a única intenção de drená-la – no caso dos vampiros, de sangue; no caso das colônias, de recursos.
Comecemos pelo princípio: Os primeiros capítulos de “Drácula” servem para estabelecer exatamente quem é o herói e quem é o vilão da história. De um lado, temos o jovem e idealista Jonathan Harker, um inglês talentoso, trabalhador e competente buscando crescer em sua carreira. Do outro, temos o Conde Drácula, um rico nobre transilvano que, como sabemos, é um terrível vampiro. Harker está empreendendo uma viagem pela Transilvânia para prestar um serviço para Drácula, que quer se mudar para a Inglaterra. No caminho, ele encontra diversas pessoas nativas do leste europeu – e, já nesse ponto, Bram Stoker deixa seu posicionamento quanto a elas claro com linhas como “as figuras mais estranhas que vimos lá eram os eslovacos, que eram mais bárbaros que os outros, embora tenham me dito que eles são bastante inofensivos”. Ao mesmo tempo, caracterizando seu herói, Stoker põe grande ênfase em coisas como sua carreira promissora, sua devoção incansável à sua fé cristã, sua educação exemplar e a beleza de sua noiva, Mina.
A escolha do Leste Europeu como lugar de origem de Drácula é interessante por uma série de motivos. Ela se relaciona, é claro, com a origem das lendas de vampiros, muito relacionadas à região; porém, é importante notar que há muito mais que isso nessa decisão em particular. Afinal de contas, a associação que fazemos hoje entre Transilvânia e vampiros existe largamente em função do Drácula de Bram Stoker, que foi quem mais fez, ainda que acidentalmente, algo para popularizar a ideia de Vlad Tepes como vampiro em primeiro lugar; embora lendas de vampiros vindas daquela região já fossem razoavelmente conhecidas, dentro do contexto social e político em que Stoker vivia a Transilvânia e a região em que ela se inseria não conjuravam na mente a imagem de um vampiro, mas sim de tensões políticas e raciais severas.
Como já falamos, o Leste Europeu sempre representou uma área de confusão para os europeus da Europa Central: eles são muito brancos e ocidentais para serem asiáticos, mas são definitivamente muito asiáticos e orientais para serem europeus. Assim, a região na época e até a atualidade se encontra em uma posição estranha dentro do imaginário europeu: uma área de intercessão cinza e questionável, que a Europa não quer aceitar como sua, mas que também não quer ceder ao oriente. Isso faz de Drácula o nível perfeito de “Outro”. Afinal, o Conde é um bárbaro pouco civilizado, um vilão, um estrangeiro que quer tomar conta da Inglaterra – não pode, portanto, ser um europeu puro. Ele, porém, também é atraente, enigmático, culto e interessante – e, com consequência, também não pode ser não-europeu.
Drácula é, literalmente e sem nenhum floreio, um nobre estrangeiro de um país menos civilizado invadindo a Inglaterra com a intenção explicita de drenar a sua população de sua força vital – especificamente, de seu sangue – e começar uma nova raça de vampiros (isto é, de humanos corrompidos pelo estrangeiro). O paralelo com o grande medo europeu – tanto então quanto, para muitos, ainda hoje – do estrangeiro menos civilizado invadindo seu país, corrompendo sua pureza étnica, “sujando” sua população e drenando sua sociedade de seus recursos não poderia ser mais literal, e o era ainda mais visível e óbvio no contexto da época, quando a atitude geral em relação ao leste europeu tornava a analogia ainda mais simples de se compreender.
A própria fisicalidade de Drácula é reveladora. Mais uma vez, é importante citar que Drácula não se alimentou dos estereótipos de vampiro que temos hoje; ele os criou. Assim, Stoker não tinha nenhuma “obrigação” particular de seguir uma determinada visão na criação de seu vampiro, especialmente tendo em vista que a vastíssima maioria das representações mais famosas de vampiros até então nada tinham a ver com o Drácula criado pelo autor. Embora em anos anteriores algumas obras, como O Vampiro de Polidori e Carmilla de LeFanu tivessem começado a criar um vampiro mais humano e aristocrático – em oposição ao vampiro que é, claramente, um cadáver em decomposição das lendas e do folclore vampírico até então –, elas não eram nem de longe famosas ou relevantes o suficiente para servirem como obrigatória ou mesmo particularmente forte influência na obra de Stoker; foi ele quem de fato redefiniu o vampiro como o conhecemos hoje. Assim, é bastante revelador que boa parte das características físicas do Conde Drácula sejam obviamente ligadas a estereótipos judeus, enquanto sua representação estética, incluindo seu sotaque e suas roupas e hábitos, seja marcadamente eslava, sendo ambas essas situações ainda mais óbvias para dentro dos padrões e noções culturais vitorianas. O que para muitos passa despercebido hoje, para o leitor original, era escancarado.
Nesse sentido, Alexa Wei escreve: “Drácula é por excelência monstruoso por pertencer à raça dos vampiros, mas seu objetivo de dar origem a uma nova raça de vampiros na Inglaterra permite que o vampirismo represente etnia mesmo enquanto liga um ao outro. Stoker escolheu a Transilvânia por sua história com relatos de vampiros da vida real e por suas superstições, mas também pinta a Transilvânia como um caldeirão racial violento e tomado pela guerra – a antítese do ideal de homogeneidade racial inglesa […]. Portanto, ele não é apenas monstruoso por ser um monstro literal, mas porque ele pertence ao que Stoker e outros contemporâneos de Lombroso teriam visto como uma raça mais primitiva de “criminosos natos” que não possuem a capacidade moral de seus pares mais ocidentais e brancos.”
O horror do colonialismo reverso é extremamente presente em sociedades coloniais, e na Inglaterra do final do século XIX em particular – foi esse o medo que originaria, menos de vinte anos depois, a Primeira Guerra Mundial, um conflito lutado inteiramente pela manutenção de impérios e a conquista de novas fronteiras, com propaganda voltada para os medos da população civil de verem seu país ser dominado pela potência europeia inimiga sendo a principal arma de convocação e controle psicológico a disposição de governos. O acadêmico Stephen D. Arata escreve que “narrativas de colonização reversa são obcecadas com o espetáculo do primitivo […]. A “selvageria” […] simultaneamente repele e cativa […], os faz perigosos mas também profundamente atraentes”. H. G. Wells explorou o mesmo tema em “Guerra dos Mundos” através de uma narrativa sobre extraterrestres invadindo a Terra, embora seja óbvio, dado suas convicções políticas, que ele o fez com a intenção explícita de criticar o neocolonialismo europeu, embora para muitos o horror do conceito tenha feito a crítica passar despercebida.
Vampiros, relações inter-raciais, miscigenação, estupro e a corrupção da virgem inglesa:
Ao longo da história da literatura de horror, os vampiros têm desempenhado um papel simbólico multifacetado, frequentemente representando os medos e ansiedades de uma sociedade em relação à sexualidade, moralidade e identidade cultural. No caso da Inglaterra vitoriana, como já bem explorado, esses medos estavam profundamente enraizados em questões de raça, xenofobia e a pureza da identidade nacional. O vampiro, muitas vezes caracterizado como um estrangeiro sedutor e ameaçador, assim, também servia como uma metáfora poderosa para o medo de relações inter-raciais, especialmente entre homens estrangeiros e mulheres brancas.
A Inglaterra do século XIX estava imersa em uma ideologia que idealizava a pureza racial e cultural, especialmente à medida que o império britânico começava a declinar. A mulher inglesa – frequentemente representada como pura, casta e moralmente superior, chegando a receber a famosa alcunha de “Anjo da Casa” – era vista como um símbolo da virtude nacional. Qualquer ameaça à sua “pureza”, tanto física quanto simbólica, era considerada uma ameaça direta à integridade do país como um todo. O vampiro, com sua habilidade de seduzir e transformar suas vítimas, tornou-se uma figura que encapsulava os medos de corrupção racial e sexual por meio da relação entre mulheres brancas e homens estrangeiros.
O vampiro vitoriano, além de sua óbvia e já bastante explorada codificação estrangeira, não apenas invade a Inglaterra, mas também ameaça subverter seus valores ao explorar as paixões reprimidas de suas vítimas femininas. O ato de morder o pescoço, sexualizado em praticamente todas as narrativas de vampiros ao longo do século XIX e em diante – tendo sido utilizado tão óbvia e escancaradamente como uma metáfora para sexo em Drácula que o próprio Stoker não se furtou de escrever seus personagens fazendo essa comparação de maneira explícita no texto -, é o equivalente óbvio a um ato de penetração. Essa simbologia torna a relação entre vampiro e vítima uma metáfora direta para o medo de relações sexuais entre homens estrangeiros e mulheres inglesas.
A alimentação de um vampiro no sangue de suas vítimas é consistentemente retratada como um ato de transgressão sexual. A penetração das presas no pescoço das vítimas – frequentemente descrito em termos que facilmente poderiam descrever uma cena de sexo ou, mais frequentemente ainda, uma cena de estupro, com mudanças mínimas – reforça a imensa carga da simbologia sexual embutida na mordida do vampiro. Mais ainda, por seu quase que por norma associada à falta de consentimento, e desde os primórdios do vampiro moderno no início do século XIX vir carregada de implicações extremamente explícitas e muitas vezes desconfortáveis tanto na forma como o ato em si é descrito quando no impacto psicológico e físico causado nas vítimas, a simbologia da mordida reforça ainda mais a metáfora do vampiro como uma ameaça à integridade feminina e à pureza cultural não apenas como um sedutor, mas como um estuprador. A mordida é quase sempre retratada como um ato de invasão, uma penetração forçada que ignora completamente a vontade da vítima, deixando-a vulnerável e irreversivelmente transformada.
Narrativamente, essa dinâmica de violência sexual é essencial para a construção do vampiro como uma figura monstruosa. O ato da alimentação é descrito em termos de domínio e submissão, muitas vezes representado em cenas carregadas de tensão erótica que se tornam perturbadoras pela ausência de consentimento, com o vampiro frequentemente retratado como um predador que ataca à noite, invadindo os espaços mais íntimos de suas vítimas – seus quartos, seus leitos – e aproveitando-se de sua vulnerabilidade enquanto elas dormem ou estão indefesas. Essa invasão literal e simbólica ressoa com a clássica narrativa do invasor estrangeiro, que representa uma ameaça não apenas à estabilidade social e cultural, mas também à segurança física e sexual das mulheres da sociedade “invadida”. Não é à toa que, ao longo da história, invasões territoriais em períodos de guerra e por poderes coloniais tenham sido repetidamente associadas à palavra “estupro” – “O estupro de Nanquim” em 1937, ou “O estupro da Bélgica” em 1914, para citar alguns exemplos – e que, em retorno, a ideia do inimigo como um estuprador que violará as mulheres de um determinado país ou comunidade na ocasião de uma invasão seja uma das mais comuns e difundidas ameaças utilizadas em propaganda de guerra ao longo da história; colonização, dominação, invasão e violência sexual são intrinsecamente ligados, e o eram ainda mais obviamente no século XIX.
Estilisticamente, a literatura vitoriana de vampiros reforça essa analogia ao descrever a mordida em termos que evocam, ao mesmo tempo, atração e repulsa. A mordida é sensual em sua execução, com detalhes minuciosos sobre a proximidade física entre o vampiro e a vítima, o contato de pele e a sensação de êxtase e dor. No entanto, o contexto deixa claro que este êxtase é involuntário, um efeito colateral de um ato forçado que corrompe a vítima tanto física quanto moralmente – nesse momento é importante também citar, ainda que brevemente, a noção hoje em dia obviamente percebida com olhos um tanto mais céticos da mulher que é irrevogavelmente mudada por um ato de penetração. De qualquer maneira, essa dualidade entre atração e violência é parte do que torna o vampiro uma figura tão perturbadora e eficaz como metáfora. Na lógica do imperialismo e do nacionalismo vitoriano, o homem estrangeiro era retratado ora como alguém incapaz de compreender ou respeitar as normas sociais e morais do Ocidente, ora como um homem – nascido de mitos xenófobos da superioridade branca, anglo-saxônica e protestante (WASP) – com desejos desenfreados e violentos que propositalmente tomaria as mulheres brancas, seduzindo-as, ou contra sua vontade (com a segunda opção sendo, é claro, a “preferível” do ponto de vista retórico por enfatizar tanto a pureza da mulher ocidental quanto a natureza vil e selvagem do homem estrangeiro, sem, é claro, implicar que a primeira preferiria o segundo ao homem igualmente ocidental, branco, etc. O vampiro, enquanto figura de alteridade, encaixa-se perfeitamente nessa narrativa, sendo descrito como alguém que não apenas ignora as regras do consentimento, mas que também encontra prazer em subverter essas regras.
Esse estereótipo encontra paralelo na já citada clássica narrativa propagada em tempos de guerra e expansão imperialista: a ideia de que os invasores representam uma ameaça sexual direta às mulheres da nação invadida – um exemplo óbvio aqui são os pôsteres de propaganda pró-alistamento britânicos durante a Primeira Guerra Mundial, extremamente difundidos após a admitidamente terrível e violenta invasão alemã à Bélgica em 1914, que com frequência representavam soldados alemães estuprando mulheres e meninas na Bélgica. Essa crença – baseada, é claro, em uma realidade dolorosa e inegável, mas que era igualmente verdadeira partindo de poderes coloniais brancos e europeus – profundamente enraizada em discursos nacionalistas e xenófobos, justificava atitudes de exclusão e violência contra grupos estrangeiros sob a alegação de proteger a integridade das mulheres nacionais. A mordida do vampiro, enquanto metáfora de um ato sexual forçado, espelha essas ansiedades ao simbolizar a penetração de um corpo “puro” por um agente externo e perigoso, corrompendo-o e marcando-o de maneira irreversível.
Essa narrativa é especialmente poderosa porque se apoia em uma visão amplamente difundida da mulher como o coração simbólico da nação. Proteger a pureza das mulheres era, no imaginário vitoriano, sinônimo de proteger a pureza da pátria. Assim, a mordida do vampiro se torna não apenas um ato de violência pessoal, mas também uma metáfora para a invasão física de um território e corrupção de toda uma cultura. A vítima feminina que se torna vampira após o ataque do predador estrangeiro é um reflexo da ideia de que a corrupção racial e cultural é transmissível – no caso das relações inter-raciais reais, através da gravidez que resulta em uma criança mestiça – de que uma única transgressão pode desestabilizar toda uma sociedade. Sua pureza era essencial para preservar a identidade racial e cultural da nação. A ideia de que um homem estrangeiro poderia “contaminar” essa pureza ao seduzir ou atacar uma mulher branca era profundamente alarmante para a sociedade vitoriana.
O medo de que o vampiro possa transformar suas vítimas em vampiros, ou seja, fazer com que elas se tornem parte de sua “raça”, é uma alegoria clara da preocupação com a miscigenação. Essa transformação não é apenas física, mas também moral e espiritual. A vítima do vampiro não apenas muda de estado, mas também se torna parte de um grupo “inferior”, uma ameaça à homogeneidade racial e cultural. O fato de que as vítimas do vampiro frequentemente se tornam seus cúmplices – ou seja, vampiros – reforça a ideia de que a corrupção racial e sexual é irreversível e contagiosa. Assim como a miscigenação era vista como uma ameaça permanente à pureza racial, a transformação em vampiro era uma mudança que não podia ser desfeita.
Corrupção física e violência sexual em Drácula:
Em Drácula, Lucy Westenra é um exemplo claro dessa dinâmica. Lucy, com sua beleza idealizada e comportamento virtuoso, embora ligeiramente inclinada à frivolidade (ela flerta com três homens, mas o livro deixa abundantemente claro que ela não leva a coisa para o lado físico com nenhum dos pretendentes com os quais ela não pretende se casar, e representa sua leviandade como simples tolice juvenil, jamais como promiscuidade) é retratada como a vítima perfeita. Lucy – ao contrário de Mina, que está dentro do arquétipo da New Woman do século XIX – é a mulher vitoriana padrão e modelo, com sua vida organizada largamente da maneira ideal dentro dos padrões de sua época. Ela representa a “virgem europeia clássica” – até mesmo seu nome, Westenra (extremamente próximo, em grafia e pronuncia, da palavra inglesa Western, “Ocidental”) implica seu papel alegórico.
Sua transformação em vampira, causada pelas repetidas mordidas de Drácula, é descrita em termos que enfatizam sua perda de inocência e pureza. A ocasião das mordidas é talvez o mais óbvio – Drácula invade o quarto de uma Lucy dormindo (ou, mais tarde, acamada por sua doença) toda noite para se alimentar de seu sangue com ela deitada em sua cama – mas a simbologia está longe de ser terminada: após ser mordida, Lucy é sexualizada de maneira explícita, com descrições de seu corpo que destacam sua nova aparência sensual e predatória. A partir de então, Lucy se torna um monstro a ser destruído – e, eventualmente, ela o é. Para os leitores da época, isso representava um aviso claro: a corrupção racial e sexual é inevitavelmente acompanhada por uma queda moral.
Desde Lorde Ruthven em John Polidori, passando por Carmila, Christabel e finalmente chegando a Drácula, a partir do qual a ideia tomou forma de tal maneira a ser fundamental para a criação de praticamente todo vampiro subsequente, vampiro não é apenas uma figura de horror; ele também é, invariavelmente, uma figura de fascínio. Essa ambivalência é central para a eficácia do mito do vampiro como representação de medos culturais e sexuais aliados. Por um lado, o vampiro é perigoso, mas, por outro, é irresistivelmente sedutor. Sua capacidade de atrair e seduzir suas vítimas é um reflexo dos temores sobre a capacidade do “outro” de corromper e subverter. Em Drácula, essa ambivalência é evidente na forma como as vítimas femininas do vampiro são descritas. Lucy e Mina, as duas principais vítimas femininas, são atraídas por Drácula de uma maneira que elas não conseguem compreender ou resistir. Essa dinâmica reflete os temores vitorianos sobre a sexualidade feminina e a crença de que as mulheres eram particularmente suscetíveis à influência corruptora dos homens estrangeiros.
Até mesmo os homens são vítimas, porém; durante sua prisão no Castelo Drácula, Jonathan Harker, o bom homem inglês, tem um encontro – hoje extremamente ultra-sexualizado, mas mesmo no livro original, de teor alta e explicitamente erótico – com as três “noivas” de Drácula, três vampiras que se alimentam de Harker em uma cena em que o personagem está simultaneamente aterrorizado e estimulado. A presença das “noivas” de Drácula enfatiza mais uma vez um estereótipo oriental – o da poligamia, que é confrontado com o relacionamento monogâmico cristão de Jonathan e Mina -, mas também inverte os papéis (algo que Stoker, conhecido por sua escrita carregada em termos de questões de gênero) e coloca Jonathan no papel de vítima de tentação – afinal, ele simbolicamente trai Mina – e de avanços sexuais indesejados nas mãos de sedutoras e promíscuas mulheres estrangeiras. Não é preciso dizer que o “adoecimento” de Jonathan nesse contexto é uma alegoria inescapável à contaminação por doenças sexualmente transmissíveis, uma preocupação extremamente pungente para homens, sobretudo aqueles que frequentavam prostíbulos, na Inglaterra vitoriana, quando a sífilis era uma aflição não apenas seríssima como extremamente comum.
A transformação final das vítimas do vampiro em vampiros, elas próprias, é a culminação desse medo. Mesmo no caso de Mina, que nunca chega a se tornar vampira e que resiste Drácula muito mais que Lucy, o impacto da interação com o vampiro é impossível de se ignorar, em primeiro lugar pela forma como é descrita – a cena em que Drácula entra no quarto de Mina, sobe em sua cama com ela de camisola, abre sua camisa, segura sua cabeça e a força a beber sangue de seu peito violentamente é escrita de tal forma que, com algumas poucas alterações em certas palavras, poderia com extrema facilidade se tornar uma cena de estupro bastante explícita – quanto pela forma como os outros personagens e a própria Mina reagem diante do fato, além, é claro, da forma como Mina começa imediatamente a apresentar traços de vampirismo e fica, literalmente, com uma marca do demônio estampada em sua testa. A pureza que foi corrompida não pode ser restaurada, e a vítima agora representa uma ameaça à sociedade que uma vez a protegia. Essa ideia de que a corrupção racial e sexual é irreversível é central para a metáfora do vampiro como uma figura de medo cultural.
Nosferatu e a violência sexual do estrangeiro:
Nosferatu eleva o simbolismo de Drácula, do qual foi uma adaptação não-autorizada, a um extremo; não é de se surpreender que a versão de 2024, que por motivos óbvios se permitiu ser muito mais explícita que o filme original de 1922 – que é o que exploraremos aqui, em virtude da relação histórica entre a criação do enredo, que hoje está sendo recontado com bastante fidelidade, e o momento específico em que ele foi escrito – tenha sido tão pesadamente percebida como uma metáfora para estupro e violência sexual: o filme foi pensado dessa maneira desde seus primórdios.
Diferente do Drácula um pouco mais humano e aristocrático de Bram Stoker, o Conde Orlok de Nosferatu é grotesco em aparência, com traços que misturam características humanas e animalescas, além de ser ainda mais obviamente codificado como estrangeiro, e especificamente como um boiardo russo (embora não o seja). Dentro do contexto histórico do início da década de 1920 na Alemanha, essa representação é particularmente significativa, tanto quando se pensa na Grande Guerra, que tinha acabado de terminar – extremamente mal para a Alemanha, diga-se de passagem – quanto na escolha da Rússia / dos eslavos em si como a nação representada esteticamente pelo invasor. Afinal, a Primeira Guerra Mundial, que acabara em 1918, tinha terminado com imposições absurdas e francamente predatórias dos países vencedores à Alemanha através do infame Tratado de Versalhes – que por si só já era e ainda o é pensado por muitos como o equivalente a mais um “estupro” histórico ou violação à Alemanha – e, em si mesma, como já discutido, carregava consigo vários paralelos temáticos ao estupro enquanto imagem clássica em associação à guerra e à invasão territorial; ao mesmo tempo, a Rússia (ou, a partir, coincidentemente, de 1922, a URSS), recentemente tomada pela revolução bolchevique, uma revolução de caráter marxista que aterrorizou e continuaria a aterrorizar a Europa pela maior parte do século XX, era então a grande “ameaça vermelha” que ameaçava corromper o resto da Europa e infectá-la com o bacilo do comunismo. Considerando os humores alemães durante a República de Weimar, da qual Nosferatu é considerado uma das supremas expressões cinematográficas, a associação entre o vampiro estrangeiro / eslavo, a colonização reversa e a violência sexual (física e individual contra uma mulher específica e metafórica, coletiva e simbólica contra a própria Alemanha) era praticamente inevitável e extremamente “apropriada”.
Assim, não é de se surpreender que, em Nosferatu, Orlok é mostrado como um ser que não apenas infringe a moralidade sexual ao atacar mulheres indefesas, mas também o faz com uma brutalidade visualmente desumanizadora. Orlok é uma figura que causa repulsa física e moral, intensificando o simbolismo da violência sexual ao transformá-la em algo visceralmente ameaçador. Sua aparência grotesca e comportamento predatório ampliam a ideia de que o vampiro não é apenas um invasor sexual, mas uma força corruptora que representa o completo oposto do ideal de masculinidade civilizada e controlada. Ao retratar o vampiro como uma força que corrompe e destrói através de uma violência sexual codificada, o filme não apenas perpetua os estereótipos do estrangeiro como predador, mas também sublinha a maneira como o horror vampírico é usado para explorar medos profundamente enraizados sobre a vulnerabilidade feminina e a fragilidade da ordem social.
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A mordida de Orlok é representada em Nosferatu com uma carga visual e narrativa que remete diretamente a um ato de estupro. As cenas em que ele se aproxima de suas vítimas, especialmente Ellen, esposa do protagonista Hutter, são filmadas de maneira a evocar tanto o terror físico quanto a inevitabilidade da violência. Orlok é mostrado invadindo o espaço íntimo de Ellen, um gesto carregado de simbolismo sobre a perda de controle e a violação. Ellen, que até então era retratada como a figura da pureza e da virtude, torna-se a vítima do vampiro, sua resistência inútil frente à força invasiva do predador. A forma como a câmera enquadra Ellen durante essas cenas reforça a sensação de vulnerabilidade e objetificação. Os close-ups em seu rosto enquanto ela dorme ou se debate nas garras do vampiro criam um contraste visual entre sua inocência e a ameaça representada por Orlok. Sua posição estática ou de submissão intensifica a impressão de que a mordida do vampiro é uma representação de estupro, com a narrativa enfatizando sua impotência diante do invasor. Essas escolhas estilísticas ressoam com a ansiedade cultural da época sobre o papel das mulheres na sociedade e os perigos representados por figuras estrangeiras ou “bárbaras”.
O desfecho de Nosferatu reforça essa simbologia. Ellen se sacrifica, permitindo que Orlok a ataque e permaneça exposto à luz do sol até ser destruído. Este sacrifício é mostrado como um ato de redenção para salvar sua comunidade, mas também pode ser lido como uma metáfora de como as mulheres eram frequentemente vistas como guardiãs da moralidade social, carregando sozinhas o peso da resistência à corrupção. A morte de Ellen após o ataque de Orlok sublinha a ideia de que a violação deixa uma marca irreparável. A representação do Conde Orlok em Nosferatu como um predador grotesco que encarna as ansiedades sobre invasão e violência sexual é inseparável da narrativa subjacente de xenofobia e medo do outro. Ao codificar a mordida como um ato de estupro, o filme explora os medos latentes de contaminação e subversão sexual que permeavam as culturas europeias do início do século XX. A ameaça de Orlok não é apenas física; é também moral e racial, um símbolo de um “outro” estrangeiro que desafia as fronteiras da civilização ocidental e ameaça consumir suas mulheres, e, por extensão, sua pureza cultural e racial.
Bram Stoker, Irlanda, Inglaterra, Colonialismo e Drácula:
Uma última palavra sobre Drácula e sua ligação umbilical com noções de colonialismo e xenofobia: é imprescindível se lembrar de que Bram Stoker era um homem irlandês vivendo sob o domínio britânico. Embora menos discutida, a forma como sua identidade colonial pode ter influenciado sua escrita é uma consideração fundamental a ser feita em qualquer discussão desse teor. A Irlanda, à época, era uma colônia sob controle do Reino Unido, e as tensões político-sociais entre os dois países eram palpáveis, com o movimento pela independência irlandesa ganhando força. Esse contexto não só permeia o subtexto de Drácula, mas também revela camadas mais complexas sobre a posição do vampiro enquanto símbolo de alteridade e invasão. Para Stoker, um homem que viveu na interseção entre identidade colonizada e colonizadora, essas questões eram não apenas literárias, mas profundamente pessoais.
O final do século XIX foi um período crítico para a relação entre Inglaterra e Irlanda. Desde o século XVII, a Irlanda havia sido incorporada ao Reino Unido, uma união marcada por violência, desigualdade e exploração econômica. Os irlandeses eram frequentemente descritos pelos britânicos como atrasados, bárbaros e supersticiosos – características que justificavam o domínio colonial sob o pretexto de “civilizar” a ilha. Após a Grande Fome de 1845-1852, que devastou a população irlandesa e foi exacerbada pela má gestão do governo britânico, as tensões aumentaram ainda mais. A Inglaterra foi amplamente vista como uma potência opressora, explorando os recursos irlandeses e marginalizando sua cultura e identidade. Movimentos como o Home Rule (autonomia irlandesa dentro do Reino Unido) ganharam força no final do século XIX, enquanto grupos mais radicais já clamavam pela independência total. Esse cenário de instabilidade e tensão entre colonizador e colonizado moldou profundamente a perspectiva de Stoker, nascido em 1847, em Dublin.
Embora Stoker tenha se estabelecido em Londres e construído sua carreira no centro do império britânico, sua identidade irlandesa e a complexidade das relações coloniais inevitavelmente permeavam sua visão de mundo. Ele era um homem formado em um contexto de colonialismo e disputas identitárias, vivendo em um espaço onde sua pátria era vista como uma periferia atrasada e supersticiosa da civilização ocidental. Stoker era católico irlandês e tinha profundo interesse em assuntos políticos irlandeses; ele era um “home ruler filosófico” – isto é, ele acreditava e apoiava o Home Rule irlandês atingido por meios pacíficos. Ao mesmo tempo, navegava bem entre os círculos culturais britânicos, trabalhando como gerente do Lyceum Theatre sob a direção de Henry Irving, uma das maiores figuras teatrais da época, e essa posição dava a Stoker um status considerável dentro da sociedade inglesa. Entretanto, sua posição também exigia que ele se conformasse às normas de um sistema que marginalizava sua própria origem e o posicionava em uma situação ambígua: embora vivesse no coração do Império Britânico, Stoker era, cultural e politicamente, um “Outro” dentro desse sistema. Sua escrita reflete essa dualidade, embora suas intenções exatas e o quão perceptivo de sua própria situação dentro de seu contexto sejam até hoje fonte de imenso debate.
Embora Drácula seja comum e mais amplamente lido como uma metáfora para os medos britânicos em relação à colonização reversa, e esse ensaio inteiro tenha se referido a isso – a ideia de que os colonizados poderiam, de alguma forma, reverter o processo e invadir o território do colonizador –, essa narrativa ganha ainda mais nuances, malgrado extremamente confusas, quando vista à luz da identidade irlandesa de Stoker. A Irlanda, enquanto colônia interna do Reino Unido, ocupava uma posição peculiar dentro do império: ao mesmo tempo, em que era europeia, era frequentemente vista pelos ingleses como “outra”, um espaço onde o sobrenatural e o primitivo ainda reinavam, tão bárbara quanto o Leste Europeu e o oriente em vários sentidos – para muitos, os irlandeses sequer contavam como “brancos”, ocupando uma posição étnica similar à dos judeus e ciganos dentro da Europa e do Reino Unido. Essa percepção se reflete na escolha de Stoker de situar Drácula na Transilvânia, uma região que, assim como a Irlanda, era marginalizada dentro do imaginário europeu, vista como exótica, bárbara e envolta em superstição.
No romance, o Conde Drácula encarna muitos dos estereótipos que a Inglaterra projetava sobre seus próprios colonizados, incluindo os irlandeses. Ele é descrito como aristocrático, mas pertencente a um sistema de poder ultrapassado, medieval e tirânico. Sua Transilvânia é um lugar de atraso, governado por tradições supersticiosas e onde o tempo parece ter parado. Essa descrição ecoa a forma como a Inglaterra via a Irlanda: como uma terra de mitos, lendas e práticas obsoletas, que precisava ser controlada para ser modernizada. O deslocamento de Drácula para a Inglaterra no decorrer da narrativa é uma metáfora clara para os temores de invasão colonial. Sua presença no coração do império é uma ameaça existencial, representando o perigo de que as forças coloniais, anteriormente subjugadas e mantidas à distância, retornem para subverter o próprio colonizador. Assim, Drácula transforma-se em um agente de colonização reversa, drenando o sangue das vítimas inglesas e convertendo-as em vampiros – uma metáfora clara para a assimilação cultural ou racial indesejada.
O vampiro, no entanto, não é apenas um invasor. Ele também reflete as ansiedades do próprio colonizador em relação à legitimidade de sua posição de poder. Drácula, afinal, é um aristocrata que governa por meio de métodos autoritários e predatórios, alimentando-se da vida dos outros. Essa descrição, embora claramente destinada a vilaniza-lo enquanto potencial colonizador estrangeiro buscando a dominação da Inglaterra, também pode ser lida como uma crítica indireta ao próprio sistema imperialista britânico, que dependia da exploração de colônias para manter sua riqueza e influência.
Stoker, enquanto homem irlandês, estava profundamente ciente dessas dinâmicas. Embora ele não fosse um nacionalista declarado, seu contexto cultural inevitavelmente informava sua obra. Ele cresceu em uma Irlanda dividida entre aqueles que defendiam a autonomia e aqueles que apoiavam a união com a Inglaterra, e suas próprias posições políticas refletiam essa ambiguidade. Stoker demonstrava certo orgulho de sua origem irlandesa, mas também parecia acreditar na narrativa do império como uma força civilizadora. Essa ambiguidade é uma característica que permeia a vida de Stoker em mais de uma situação – sua relação com sua própria sexualidade, por exemplo, é similarmente carregada de uma maneira quase idêntica. Essa dualidade transparece em Drácula, que, ao mesmo tempo, em que explora os perigos da invasão estrangeira, também questiona, ainda que indiretamente, a legitimidade e a moralidade do poder colonial. A obra pode ser lida como uma manifestação do conflito interno de Stoker enquanto escritor dentro de seu contexto, e na peculiar posição de alguém que simultaneamente usufrui do colonialismo e é vítima dele, e que escreve uma peça que, ao mesmo tempo, vilaniza o estrangeiro que quer invadir a Inglaterra, mas também a Inglaterra que domina o estrangeiro.
Por um lado, Drácula reflete os medos e preconceitos vitorianos em relação ao exterior, incorporando estereótipos que eram usados para justificar o domínio britânico sobre outras culturas. Por outro lado, o romance também parece reconhecer – ou, talvez, aponte sem querer – as contradições e hipocrisias do imperialismo, sugerindo que o verdadeiro horror não está apenas no invasor, mas no sistema que perpetua essas hierarquias de poder. Jonathan Harker aqui atua como a representação perfeita dessa dualidade, e sua posição frente a Stoker é até hoje tema de grande debate. É ele uma representação do próprio Stoker, e são suas opiniões preconceituosas – sobretudo no início do livro – reflexões das opiniões do próprio autor quanto a estrangeiros? Ou é ele uma representação pelo menos um pouco crítica e, dependendo da leitura, até mesmo ligeiramente satírica do “homem inglês médio” com todos os seus preconceitos e xenofobia que Stoker certamente enfrentou em um momento ou outro de sua vida, e do qual com certeza estava a par, sendo vítima dela? Ou um pouco dos dois?
O Conde, o Colonizador e o Colonizado:
A análise de mitos de vampiros e de Drácula (e sua adaptação clássica, embora alterada, Nosferatu) dentro do contexto histórico, político e cultural de seu tempo revela como o vampiro de Bram Stoker se torna um símbolo multifacetado, refletindo as ansiedades de uma sociedade vitoriana marcada por mudanças profundas. Em uma era de declínio imperial, avanços científicos e tensões sociais crescentes, a figura do vampiro encapsulava medos relacionados à xenofobia, colonialismo, sexualidade e as pressões internas do próprio sistema imperial. Embora Stoker tenha construído seu Conde Drácula como um vilão claro e ameaçador, o vampiro também representa algo mais profundo: uma crítica implícita ao sistema que o produziu. Drácula é, ao mesmo tempo, uma metáfora para os percebidos horrores da colonização reversa dentro do imaginário vitoriano e um reflexo das contradições do colonialismo britânico. Seu poder de atrair e corromper, sua natureza predatória e sua posição como estrangeiro ameaçador, tudo isso dialoga com os preconceitos e as ansiedades da época, mas também levanta questões sobre a moralidade do sistema que construiu tais medos.
Para além de seu significado histórico, Drácula continua sendo uma obra de imensa relevância, não apenas como uma peça seminal do gênero de horror, mas como um espelho das dinâmicas de poder, identidade e alteridade que permanecem conosco até hoje. A figura do vampiro, com sua capacidade de adaptação e reinvenção, segue sendo um poderoso veículo para explorar os limites do que significa ser humano em um mundo de diferenças e desigualdades. Ao revisitar o legado de Stoker, é impossível ignorar como seu trabalho transcendeu seu tempo, oferecendo uma visão incisiva e, por vezes, perturbadoramente atual sobre as interseções entre medo, poder e identidade cultural.
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