Entre os dias 20 e 23 de fevereiro, a Cinemateca Brasileira recebe a Retrospectiva José Rubens Siqueira, reunindo, em programação gratuita, 14 filmes restaurados e digitalizados, inéditos ao público atual, mas que carregam consigo prêmios nacionais e internacionais.
Idealizada por Fernando Severo e produzida e curada por Matheus Rufino, a retrospectiva apresenta ao público um artista hoje desconhecido, mas que marcou a história do cinema nacional.

Dramaturgo, diretor, ator, cenógrafo, figurinista, José Rubens Siqueira morreu muito próximo ao palco, lugar de sua paixão. O artista estava no elenco da peça “O Jardim das Cerejeiras” (Tchekov), ainda em exibição em São Paulo, quando faleceu, no dia 17 de fevereiro de 2025.
Rubens Siqueira que, apesar de nutrir grande comoção pelo contato direto com o público, tendo preferido o teatro ao cinema depois dos anos 70, integrou a primeira turma de Cinema da ECA-USP. Apesar de não chegar a concluir o curso, foi colega de turma de Ismael Xavier, João Batista, Joaquim Pedro de Andrade, entre outros nomes, e a partir deste contato com o cinema, os dois universos que compõem a subjetividade do artista colidiram.
As obras de José Rubens se dividem em dois momentos: seguem as linhas tênues entre o Cinema Marginal e o Cinema de Vanguarda.
Influenciado por Bergman, Felini e Antonioni, os primeiros filmes de Siqueira respiram os impulsos do Cinema Novo, tendo transitado e convivido com nomes que compõe a Boca do Lixo, em São Paulo, durante a graduação em Cinema na Escola de Comunicações Culturais (USP). Sua vivência no teatro, porém, o chama mais para perto da multidisciplinaridade característica do Cinema Marginal.
O artista, contemporâneo a Roberto Sganzerla, Júlio Bressane, Andréa Tonacci, entre outros que começam a surgir na efervescência cultural brasileira, compartilhou o cenário de escassez de recursos que enfrentava a realidade artística no início dos anos 60. Auxílios estatais, por exemplo, eram nulos, e por isso Rubens Siqueira começa a desenvolver o que conhecemos hoje como “cinema guerrilha”, ou seja, o artista se responsabilizava pela produção, operação de câmera, montagem, direção, etc, etc, etc.
Isso tudo, segundo Fernando Severo e Matheus Rufino, também acontece por sua preferência ao teatro, que dá às obras de José, neste primeiro momento, o caráter “renascentista” que compõe o espírito do próprio artista, segundo os pesquisadores.
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Seus filmes e animações, compostos entre 1960-1980, foram atravessados pela entrada do AI-5 na ditadura militar, e a ruptura de suas linguagens é extremamente perceptível em sua obra. Com as iminentes ameaças a amigos e colegas de cena, Rubens Siqueira resolve se autoexilar em Londres com sua então esposa Maria Helena Grembecki. A esta altura seus filmes não eram ainda explicitamente engajados politicamente, porém o conteúdo e tom libertário das películas se destacam durante toda a retrospectiva.
Em “Ocorrência 642/67”, por exemplo, fica claro que a trama gira em torno de situações da época, quando uma jovem doméstica, trazida do interior para trabalhar numa casa abastada engravida do filho-proprietário. Ao mesmo tempo, a sutileza de José deixa subentendido que o filme pode se relacionar ao artigo 642 do Código Civil (1916), que estabelece que “o depositário não é responsável por casos de força maior”, que na época regulava também os direitos e obrigações das esferas de relações pessoais.
A sequência da exibição deixa claro o árduo trabalho de pesquisa e interesse de trazer à tona temas que estavam claramente sufocados no Brasil dos anos 60-70. Porém, após voltar do exílio, tendo convivido com o tropicalismo exacerbado, junto à comunidade Caetano, Gil, Jards, e companhia, José Rubens Siqueira inaugura a vanguarda das animações brasileiras, na qual pôde participar como pioneiro.
Durante sua estadia no exterior, o artista que já era exímio desenhista, estudou artes plásticas, e ao voltar para território brasileiro inaugurou os primeiros destaques do gênero de animação em nosso país. Em “A Experiência Brasileira no Cinema de Animação”, Antônio Moreno (UFF) destaca as obras de José Rubens Siqueira por seu caráter Vanguardista, influenciando não apenas outros animadores brasileiros, mas também a publicidade nacional, com “Closeup”, por exemplo, que foi amplamente utilizado como referências em inúmeras propagandas nos anos 80.
Trazendo uma linguagem alegórica para seu repertório, suas animações e curtas começaram a apresentar características subversivas, onde temas sombrios ganhavam cores e movimentos sutis nos traços do artista.
Entre suas animações mais ferozes, destaco “Emprise”, que nos apresenta Eros e Tanatos a partir de perspectivas que inauguram imagens recorrentes em sua trajetória: o ovo como representação do início do todo, o cavalo como libertação, as repetições e traços firmes que passeiam pela tela em busca da exaustão, bocas e dentes que ironizam a melancolia nacional, encharcada de referências estadunidenses que citam de maneira passiva-agressiva as obras de Andy Warhol, e múltiplas citações ao antropofagismo que acabam por se tornar comuns à sua filmografia.
Ainda de modo sutil, Rubens Siqueira continua a provocar a elite com filmes inclusive realizados por prêmios do Conselho Estadual de Cultura, como no caso de “Semana de Arte Moderna”, onde escutamos artistas e intelectuais debaterem a qualidade cultural da sociedade, ou em “Hamlet”, onde escutamos a voz de uma criança lendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos no meio da busca da personagem pela felicidade plena.
Além das animações, é destaque da mostra o longa “Amor e Medo”, gravado antes do exílio do artista, e finalizado no seu retorno à solo Brasileiro. A cópia, revelada diretamente a partir dos negativos originais, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, impressiona pela qualidade da restauração, digna de filmes gravados atualmente, em cópia digital HD.
Mas não apenas por isso é tão condizente com o espírito de seu tempo. O caráter vanguardista da obra – elogiado pelo crítico brasileiro José Carlos Avelar – conversa diretamente com o estado atual do mundo, que parece estar comendo o próprio rabo e nos lançando novamente ao isolamento afetivo, criativo e artístico, além de guardar em seu seio uma narrativa fragmentada, comum no cinema atual, apresentando interferências de suas animações, em tempo, inédito no brasil. Além disso, o longa cita diretamente Walter Hugo Khouri com o peso melancólico e solitário de seus personagens.
“Amor e Medo” é uma relíquia do cinema brasileiro, o primeiro longa-metragem de José Wilker. Mas a mostra conta com outros diamantes do cinema nacional, “ATENÇÃO: PERIGO” é a primeira aparição de Sônia Braga nas telas, e o filme também nos lança ao desespero da vida adulta.
O processo de digitalização do acervo só foi possível por causa da Lei Rouanet (2023), e desde então o trabalho dos organizadores da retrospectiva tem sido restaurar as obras, com pesquisas de arquivo e laboratório. Apesar de todo o esforço, ainda estão perdidos alguns filmes de José Rubens Siqueira, como “O Pecado de Marta” (RJ, 1970), que foi o primeiro longa estrelado por Jonas Bloch.
Os filmes foram restaurados entre a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, e a Link Digital, no Rio de Janeiro. Segundo Matheus Rufino, José participou das fases de digitalização e restauro dos filmes, auxiliando diretamente os pesquisadores em casos de dessincronia ou aberrações cromáticas.
A retrospectiva é o “resgate da memória do cinema brasileiro, paulista e carioca”, segundo Fernando Severo, que relembra a primeira vez que teve contato com a obra de José Rubens: durante a exibição de um de seus curtas na íntegra durante o Fantástico, e depois nas telas de cinema, já que “durante os anos 70 havia uma lei que promovia e exibia curtas metragens brasileiros antes dos longas começarem a rodar nas telonas”, segundo o pesquisador.
Em paralelo a mostra, Matheus Rufino e Fernando Severo, seguem trabalhando na elaboração de um catálogo sobre a totalidade da obra de José Rubens Siqueira, que sempre foi meticuloso com registros sobre comentários, críticas publicadas sobre suas obras, e originais de suas animações. O catálogo tem previsão para ser lançado ainda no primeiro semestre de 2025.