O caráter insurgente das mulheres em “O que resta a partir daqui”, de Flávia Braz

Desde que li o livro “Um defeito de cor”, carrego comigo uma palavra e dela, não consigo me desvencilhar. Me refiro a palavra SERENDIPIDADE, que se refere ao conjunto de fatos que ocorrem inesperadamente e que representam uma agradável surpresa.

Ler O que resta a partir daqui, publicado pela Editora Aboio, 2024, foi um desses acontecimentos inesperados que me fazem acreditar ainda mais na importância de estar sempre pronta para aproveitar os bons encontros que a vida me proporciona.

Antes de falar sobre o livro, preciso compartilhar os inúmeros aspectos que me aproximam não somente da obra, mas principalmente de sua autora. Flávia e eu (Fernanda) temos nomes com a mesma inicial, a letra “F”; nós duas nascemos em 1984; ela publicou seu primeiro romance – este aqui mencionado – em 2024, assim como eu, publiquei meu primeiro livro de poesias nesse mesmo ano. Para encerrar essa pequena lista de semelhanças, tínhamos irmãos mais novos e não os temos mais.

Sobre esta última semelhança, eu lamento profundamente, mas não posso deixar de citar, dada a intensidade de uma das passagens nesse livro que mais mexeram com meus sentimentos:

“[…] um irmão morto talvez” seja mesmo um imenso quintal vazio” (p. 165)

Tão vazio, que para preencher dei ao meu livro o nome quintal de casa: memórias (Editora Xará, 2024) e o dediquei a meu irmão, que “foi plantado e não floresceu”, mas esta não é uma resenha sobre nossos livros. Esta é uma resenha sobre o livro da Flávia Braz, com suas personagens ricas, bem construídas e capazes de provocar as sensações mais improváveis.

Direto ao livro: O que resta a partir daqui

Com uma narradora em primeira pessoa com um humor ácido e com uma inteligência ímpar, que vai nos conduzindo por sua própria história, entre idas e vindas do passado infante ao presente infame. Mesmo sabendo que narradores em primeira pessoa podem não ser confiáveis, você acaba cedendo aos desencantos desta.

[…] a dona Yolanda compreendia o que estava acontecendo ao seu redor, por muito tempo seus olhos continuaram ausentes, seu corpo impassível, o que me fez acreditar que ela era só um punhado de carne meio flácida que carregava uma tampa de cabelo branco que cobria um cérebro meio morto, meio desmilinguido, meio falido, enrugado, talvez mais enrugado do que são os cérebros convencionais, o que me fez acreditar que ela estava realmente fora de si, até aquele dia. (p. 34).

A narradora é uma cuidadora de idosos que odeia sua função, mas tem que fingir ser alguém acima de qualquer suspeita. Enquanto ela narra seus pensamentos intrusivos e sua total falta de empatia para com os idosos, crianças e qualquer outra pessoa, também é possível descobrir como esta personalidade foi formada. Vítima de eventos traumáticos como a perda da mãe, o abandono do pai e o abuso sofrido pelo primo mais velho, não restou muito a ser resgatado por esta mulher, exceto pensar no “que resta a partir daqui”.

Não há como não se abalar com as descrições de cada acontecimento de maneira tão peculiar e nada óbvia. A trama se dá durante todo o livro e apenas bem próximo do final descobrimos o sentido dos encontros e desencontros e como todas as coisas a atravessam, confluindo para fortalecer seu jeito ácido de ser. 

Na casa da minha tia precisava dividir o quarto com meu irmão, mas isso não era impedimento nenhum pro sonambulismo do meu primo, que o conduzia até minha cama e o fazia entrar debaixo das cobertas dizendo calma, calma que vou te ensinar, só não faz barulho, tá? (p. 39).

A insurgência da narradora

A última vez que encontrei uma personagem feminina completamente fora dos padrões heteronormativos estabelecidos, foi no livro A Pediatra, de Andréa Del Fuego, publicado pela Companhia das Letras, em 2021, e confesso que foi uma grata surpresa encontrar uma personagem tão forte e insubmissa, quanto a Cecília, em O que resta a partir daqui.

Personagens femininas com essas características são difíceis de ser encontradas, muito embora sua frequência tenha aumentado nos últimos anos. Mulheres cheias de raiva e totalmente conscientes de suas dores e paixões, se manifestando livremente no plano ficcional, esbanjando força, inquietude e desobediência.

A cuidadora, que não tem nome e nem um lugar para chamar de seu, é uma representação do aprisionamento e da objetificação do corpo feminino, na forma como somos corpos-alvos nessa sociedade machista, regida por um patriarcado que nos oprime e nos aprisiona em suas normas tão naturalizadas.

O que resta a partir daqui é uma obra para ser degustada, arrancando boas risadas, mesmo em meio à tragédia. Também permitirá excelentes reflexões sobre as violências as quais as mulheres estão sujeitas e como superar nem sempre é uma possibilidade. Então ficam as dores e os ressentimentos das lutas travadas e não superadas. O vazio profundo de quem deseja seguir, mas nem sempre é possível. O que fica de verdade é a pergunta sobre o que resta a partir daqui?

Flávia Braz nasceu em São Paulo, em 1984. É autora do livro de crônicas Quem foi você na fila da quarentena? (Reformatório, 2022) e da newsletter Apagar Para Todos. É formada em jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo e atua como executiva de comunicação. Tem MBA em Marketing Digital pela ESPM e é pós-graduada em Formação de Escritores Ficção pelo Instituto Vera Cruz. O que resta a partir daqui, contemplado pelo ProAC em 2023, é seu romance de estreia.

Adquira o livro aqui: https://www.amazon.com.br/que-resta-partir-daqui/dp/6585892283 

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