Rafael Lima mergulha nas partículas das palavras para encontrar os mistérios e os sentidos da vida
Nonada. Mônada. Átomo. A filosofia, a literatura e a ciência já dedicaram grande parte de seu tempo na busca de qual seria a partícula mínima do universo. No teatro, por exemplo, Beckett foi longe ao fazer uma peça inteira contada por uma boca em “Eu não” ou até escrevendo “atos sem palavras”. O mínimo de tudo, onde quer que se esteja, o ponto ubíquo em que qualquer coisa era tudo.
Porém, pensar o mínimo não tem a ver com um possível vazio ou uma ausência, ao contrário, significa saber lapidar a matéria em busca daquela pequena parte ínfima, mas que representa o todo, o nada que é ao mesmo tempo tudo. Acredito que este é o principal motor poético da escrita de Rafael Lima em Dentro do vazio, a palavra é atômica, de Rafael Lima
Dentro do vazio a palavra é atômica é um livro de poesia de Rafael Lima publicado pela Editora TAUP – Toma aí um poema, em 2024. Logo no prólogo do livro, Rafael nos dá uma pista do que vamos encarar em suas poesias: a ideia de “fazer da poesia um periscópio de observação deste universo que se furta a nossa razão”.
Entretanto, a poesia que vamos encontrar neste livro não está procurando uma metafísica da palavra como fizeram poetas como Walt Whitman ou Rimbaud. Ao contrário, Rafael vai, tal como uma britadeira, escavar os substantivos, adjetivos e verbos na busca de, como ele próprio diz, mergulhar no homem, na natureza, e no próprio universo. Tarefa nada fácil, mas, assim, sua poesia se coloca numa tradição que está muito mais próxima de procedimentos poéticos como de João Cabral de Melo Neto ou Augusto dos Anjos.
Nos 130 poemas do livro, um cosmos poético construído e talhado pelas palavras, Rafael pode enfim circular pelos diversos campos da memória, história e conhecimento humano. Em alguns momentos, flerta com a física, em outros com a metalinguagem, em outros com a filosofia, mas sempre, isso é importante repetir, sempre acredita na poesia como mediação para entendimento do mundo. Isto está, inclusive, em sua epígrafe, que captura do físico Niels Bohr: “Quando chegamos aos átomos, a linguagem só pode ser usada como na poesia”.
Em um dos primeiros poemas do livro, “Dar nome aos bois”, o gesto está em tirar a glosa da esfera da qualquer coisa, da mera tagarelice, apontando que é preciso uma atenção sensível para “desbocar palavras ao pé do vento”, uma vez que “não diz coisa alguma” tal como “o faz o louro / em jocoso arremedo”. A tarefa, então é a de:
Deglutir
a palavra cuspida,
polir a língua bárbara
SENSIBILIDADE
Trabalhar a pedra lascada,
recuperar o sentido recôndito
pela lacuna do grotesco.
Ou seja, é preciso recuperar a palavra do seu susto, do seu medo, do seu perigo, da sua gravidade, tal como se fosse pedra a ser lapidada em meio a tanta distração. Em outro poema mais a frente, isto parece se confirmar quando Rafael traça o real como uma forma de criação que pode ser reinventado:
Real não é o que se vê:
visão de mundo – é somente o que se crê.
Pensar:
repetere modus operandi
rebuild the knowledge
Entre Fernando Pessoa e Carl Sagan, ou seja, entre o mistério absoluto que pode ser dito e o mistério absoluto que deve ser aceito em seu vazio e busca, a poesia de Rafael enfrenta a questão do tempo, termo salutar para o século XX diante da relatividade.
Em “Tempos Fluidos”, o autor avança contra uma espécie de perda da força diante do mundo trazido por uma espécie de sensação de presente infinito, de tempos sem ontem num eterno presente. Em sua poesia, o tempo é uma questão de vinculação política e profética:
A regra dura como pedra:
alcance com os braços
aquilo
que não virá por desejo.
O tempo não admite passatempos.
Existir não é hobby.
Uma conversa muito interessante de se fazer com Dentro do vazio, a palavra é atômica é uma aproximação com a poética do poeta brasileiro Augusto dos Anjos, do final do século XIX e começo do século XX. Em “Psicologia de um Vencido”, Augusto dos Anjos diz:
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Em procedimentos que se roçam, se tocam, Rafael Lima inventa uma “Carbo-poesia”, ou seja, uma poesia que se volta para essa matéria que teria possibilitado a geração de nossa vida: o Carbono. Diz:
Pletoricamente orgânico
matéria viva animada de simples composição carbônica
como a fuligem que trago na sola dos pés
Carbo
poesia,
diluída atomicamente
pelos mesmos poros de poeta
semelhante à constituição da terra.
Em Dentro do vazio, a palavra é atômica, Rafael Lima faz uso da linguagem com pitadas de elegância, com uso formal às vezes, e informal, um pouco mais, para traduzir em forma e linguagem o modo tresloucado que o caos assombra a nossa existência.
O autor vai fundo na química e nas palavras para encontrar respostas para as questões da nossa vida. De certa forma, podemos dizer que, sem tempo para a prosa amorosa, Rafael quer ir além: confia na força dos vocábulos e não os poupa, fazendo uma poesia pedregulhosa, carbônica, atômica, ou mais. Nonada.
Um belo livro de poesia, fica a dica!