“Delírio do Nada”, de Martha de Hollanda: obra pouco explorada é um sopro de surrealismo no modernismo brasileiro

“Tragicamente, langorosamente, tremente, eu fechei tua boca em minha boca”
Martha de Hollanda,
Delírio do nada

“À frente do seu tempo”. É assim que grande parte da imprensa classifica a obra de uma mulher como Martha de Hollanda. Entretanto, não existem pessoas à frente do seu tempo, ao contrário, todos estão absolutamente imersos em diversas questões que atravessam sua contemporaneidade: gênero, país de origem, região, religião, raça, classe social. 

É por isso que o pioneirismo destas pessoas é tão abissal, pois com tudo de seu tempo, ela consegue produzir outros tempos futuros que transformam o estado das coisas no presente. Martha de Hollanda é uma destas mulheres. 

“Talentosa, sensual, exagerada”, descreve uma amiga sua, a jornalista Sylvia Moncorvo, ainda em seu tempo. A verdade é que vamos escavando a sua biografia para encontrar adjetivos que deem conta do que Martha foi enquanto estava viva. Talvez dizer que ela foi uma pernambucana da primeira metade do século XX a coloque em um espaço que dimensione. Talvez. 

É que, ao mesmo tempo, isto nos dá o limite da amplitude de seus feitos, porque é evidente que, ainda que gigante, estando fora da capital Rio de Janeiro ou do centro comercial São Paulo, o seu reconhecimento nos anais da História tenha sido reduzido, fato que foi visto por Sylvia Moncorvo, na Revista FON FON, ainda em 1930:

“o destino dos artistas vive sob influências geográficas. A sua sagração depende, principalmente, do meio onde se agita sua arte, e aí se confina, às vezes, toda a sua existência.”

De qualquer forma, Martha de Holanda foi uma escritora, jornalista e feminista pernambucana, o que talvez seja um bom resumo de sua atividade. Sua maior notoriedade, no entanto, foi como sufragista, tendo ela ficado marcada em sua biografia como a primeira mulher a ter direito ao voto em Pernambuco.

Martha conseguiu, através de medida judicial, esse direito, que posteriormente foi revogado, tendo sido garantido apenas em 1933, após fundar a Cruzada Feminista Brasileira, em que usava os veículos de comunicação para divulgar seu pensamento, lembrando muito a atividade que a personagem Catarina Batista, interpretada por Adriana Esteves, exercia na novela O Cravo e a Rosa (2000), baseada na obra a A Megera Domada, de William Shakespeare (1597). 

Martha de Hollanda: escritora e primeira pernambucana com direito ao voto

No caso de Martha de Hollanda, entretanto, não parecia haver qualquer traço de fera indomada, mas de uma escrita indomável que de um lado vai compor seu trabalho como jornalista e, de outro, sua atividade como poeta através do livro que vamos tratar aqui neste texto: Delírio do nada (1930). Embora se tenha notícias de mais duas obras da autora, Espasmos (1936) e Escândalo (1939), nenhuma dessas obras chegou ao mundo. 

Delírio do nada, publicado pela Editora Scortecci na Coleção Myosotis, com edição de João Scortecci, é uma obra poética que incorpora uma série de tradições literárias em sua composição, o que pode esclarecer, mas também confundir. É difícil classificar dentro do que conhecemos do campo da poesia, mas este talvez seja o maior mérito do livro: sua pluralidade de escrita a coloca diante dos grandes nomes da poesia. Para a própria Martha de Hollanda, o livro é “um cartaz do meu EU na esquina da geração que passa”. 

Só para mencionar alguns nomes, o livro parece um eco das transformações poéticas trazidas por Walt Whitman, em Flores de Relva (1855) de um lado, e Iluminações (1886), de Arthur Rimbaud, de outro. Ou seja, o livro chega ecoando dois dos grandes renovadores da poesia na modernidade, pois Delírio do nada está dentro do que poderíamos chamar de modernismo, mas mergulhado no simbolismo e nadando nas águas do surrealismo.

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De cara, logo nas primeiras páginas, ficamos diante de uma espécie de dicionário poético de um poema que abre assim: “Flores, Perfume, Sol, Luar / Passado, Silêncio, Gazas, Beijos: / escutai o grito estertorado que me vem das entranhas mais íntimas!…’Dai-me o meu amor!!’”

Em seguida, passamos a este enciclopedismo possível para um modernismo poético que traz algumas visões (iluminações de Rimbaud?) sobre alguns tempos como: 

Tempo:
“amparai minha cabeça sob o guarda-sol
empoeirado da felicidade”

Arte:
“erguei-vos diante da perfeição e dizei:
eu corporizei, ritmei, transubstanciei tudo.”

Incluindo questões que atravessam o social e o espiritual:

“A fome é a toalha da necessidade
estendida na mesa do mundo. (…)
A mentira e a verdade andam tão iguais
que se confundem. (…)
O bem é o sono do mal. (…)
No Dia de Finados, Deus deveria
visitar a terra para ver quanto é fértil a lavoura de
lágrimas que ele semeou.”

Uma outra característica bem marcante de Delírio do nada são os mergulhos nos poemas de temática amorosa, mas que não tratam o amor como uma ideia, como uma potência idealizada que paira, mas como um sentimento atravessado por um corpo convulso, lançado no tempo e doendo, sofrendo, se remoendo. Tal é o toque contemporâneo dessa poesia que me remeteu, inclusive, a um estilo que antecipa traços de escrita da poesia beat norte-americana, que mistura o surrealismo com o jazz americano. Em um dos poemas, o de número IV, percebi até traços da escrita de um brasileiro paulista de contracultura que fez parte da geração mimeógrafo, Roberto Piva. Martha de Holanda diz:

“(…) Desagregar com o bisturi o minúsculo
de minhas unhas, tuas artérias e 
parar teu cérebro. Fazer com teus
pulsos rosetas de rubis para mim; de
teus dentes braceletes brancos; tecer
leques bizarros com as fibras estriadas 
de tuas veias e, depois…depois brincas,
numa macia de bronze, com teu
sangue coagulado.”

Trecho fortíssimo e belo de um poema que me remeteu diretamente a este de Roberto Piva:

“vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas
coxas imberbes & brancas
vou dilapidar a riqueza de tua
adolescência. vou queimar teus
olhos com ferro em brasa.
vou incinerar teu coração de carne &
de tuas cinzas vou fabricar a
substância enlouquecida das
cartas de amor.”

Em outro momento, Martha de Hollanda mergulha numa referência à tradição das alegorias, algo que era muito comum nos autos medievais, para colocar em diálogo figuras como a A Caveira e A Coruja, em um diálogo gótico em que uma coruja interpela a caveira sobre sua existência, em que a caveira responde:

“Sei, apenas, que a morte me desnudou com beijos de terra, porém não pôde arrancar a última vestia que é a reminiscência dolorosamente corporizada da vida – a ossada.”

Delírio do Nada é uma obra pujante, verborrágica, trágica e febril, que busca uma tentativa de alucinação de um verbo que vai à catalogação dos sentimentos para tentar traduzi-los, que investe nas listas dos movimentos interiores para tocar algum traço de significado de uma subjetividade moderna, feminina, que não tem tradução. 

Diante de um nada absoluto, de um cosmos que não nos responde as perguntas, nem sequer um “nunca mais”, Martha de Hollanda diz: “Eu serei, então, a primeira nebulosa errante a vagar indistintamente no teu Nada”. E em seu delírio, de novo, revê a possibilidade de uma identidade perdida numa fronte amorosa na qual vislumbra “a agonia louca dos nossos beijos a se beijarem morrendo”. 

Delírio do Nada, a poesia que nos ajuda a reler o modernismo brasileiro, invertendo os eixos de força de uma poesia que está fora do centro, fora dos grandes nomes, mas possui uma potência sem igual.

Sobre A Coleção Myosotis

Myosotis é planta, é flor, é beleza, é emoção e também é não esquecer; é necessidade, súplica e promessa: não-me-esqueças.

Myosotis, não-me-esqueças, é vegetal e sentimento, é transitiva e amorosa, é de mão dupla, tripla e infinita, para quantos amores e memórias se chegarem e couberem – ou não.

Myosotis, a coleção, é uma celebração ao lembramento.

Lembrar, evocar, reviver, recordar, rememorar, relembrar, memorar, comemorar, reavivar, tudo que remete a não esquecer, a não deixar perecer nem se perder nas vielas do Tempo.

Myosotis, a coleção, foi pensada para reviver e celebrar a vida e a obra de escritoras cujas ideias e emoções, transubstanciadas na palavra escrita, um dia vieram à luz, brilharam, encantaram, comoveram, confirmaram ou romperam com tudo e com nada, para depois caírem numa espiral descendente, lenta, progressiva e quase inexorável de esquecimento.

Apenas quase, porque há sempre alguém esbravejando, como pode, contra a inexorabilidade do Tempo, do Espaço, do Espaço-Tempo; e esbravejar é uma das facetas do não esquecer, do lembramento.

Myosotis, a coleção, é afeto: amaremos!

Myosotis, a coleção, é promessa: lembraremos!

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