No ano passado, entrei em contato com um livro de poesia que reinaugura um tema muito comum à literatura como um todo: a melancolia. Muitos ensaios e poemas foram escritos sob ou sobre o sujeito melancólico e muito se tentou desvendar de onde se vinha esse sentimento. Para alguns como Freud, pode ser visto de duas formas: a melancolia é uma espécie de sentimento de perda sem o objeto perdido, na esfera individual. No campo do coletivo, o crescimento da cidade moderna nos dá uma espécie de sentimento de perda de pertencimento, cabendo a nós um “Mal estar” sem nome, mas que poderia muito bem ser chamado de melancolia. Agora, surge a obra Melancolicamente, livro de estreia de Renata de Alcântara Stuani, publicado em 2021 pela Luva Editorial, com edição de Vitor Uchôa.
O livro é um compilado de cerca de cem poemas da jornalista paulista que já circulou por diversos países, como Portugal e Peru, e diversos jornais, como Veja e Agência Estado. Como eu escrevi numa resenha publicada aqui no site, nesta obra, entre poemas breves e longos, a autora mostra pela primeira vez seus escritos para o mundo nas cerca de 130 páginas do livro que esmiuçam diversas faces da melancolia.
Melancolicamente é dividido em seis sessões: “meninices”, “feminina, “masculino”, “lugares”, “divindades”, “amor e luto”, como se a obra fosse acompanhando uma espécie de “maturação” das temáticas dos poemas que começam nas lembranças nostálgicas da infância e na formação da autora até seus deslocamentos pelo planeta e tentativas de se encontrar metafisicamente como mulher no mundo.
Eu fiz uma breve entrevista com a autora Renata Stuani que você pode conferir agora:
Luiz Ribeiro – Uma coisa que me chamou atenção no seu livro, e isso fez partedo meu texto sobre ele, é a escolha do título. Por que Melancolicamente?
Renata Stuani – Eu comecei a escrever poemas em 2015, há 10 anos, e não foi um processo lúcido. Os pensamentos que depois se transformam em versos me chegam de um lugar meio obscuro da mente, como se fosse do porão do cérebro. Eu trabalhei mais de 20 anos como jornalista e sei que a escrita de um texto jornalístico ou de um ensaio não vem do mesmo lugar ou do mesmo estado mental de onde vem um poema. Acho que músicos entendem bem o que eu digo, é como se eu fosse capaz de compor melodias, só que usando palavras ao invés de notas musicais.
Eu estava na crise da meia-idade quando comecei a fazer poesia, foi uma necessidade íntima de desabafar comigo mesma. Daí percebi que o que eu fazia tinha valor estético e fui juntando os trabalhos pensando em publicar usando um nome poético: melancolicamente (ou mente melancólica). Mas não é só isso: acho que pressenti, como muitos artistas fazem, um estado de tristeza e luto geral na nossa sociedade e no nosso momento histórico. Existe algo que perdemos e nãonecessariamente sabemos nomear. Você, Luiz Ribeiro, lembrou disso muito bem quando você se referiu à Freud, o criador da psicanálise. Freud fala desse estado mental de luto por algo meio nebuloso no texto, “Luto e Melancolia”, que eu li só depois que o livro estava publicado, após 2021. Portanto o meu trabalho foi totalmente intuitivo.
Luiz – Qual o papel da melancolia na sua vida?
Renata – Meu livro nasceu por causa do susto com o coronavírus. Em 2020 eu estava francamente depressiva. Eu achei que ia morrer na pandemia e pensei que meus poemas tinham que ser salvos. E a forma de salvá-los era publicá-los urgentemente. Descobri pela Internet a Luva Editora do Rio de Janeiro e eles montaram o livro com muito carinho. Portanto o livro é fruto direto desse estado de melancolia em que a humanidade se meteu e que ficou claríssimo a partir de 2020, com a crise ecológica. Eu uso a palavra melancholia (que vem do grego) para fechar um poema com a data do meu nascimento (1970) e que está relacionado à dor da minha geração, dos nascidos entre 1965 e 1980. Somos o que os americanos chamam de geração X. Esse X é uma incógnita.
Eu percebo na minha geração um luto meio difuso por algo perdido, e às vezes esse sentimento se transforma em raiva e ódio. Acho que nós nos tornamos adultos num momento em que o sistema capitalista se mostrou exaurido e quebrado, incapaz de responder às demandas da nossa juventude. As novas gerações já sentem essa exaustão mais claramente. Vivemos num momento histórico que, na minha opinião, indica um intervalo entre um modo de vida que já não faz sentido – o capitalismo predatório – e um outro modo de vida que já nasceu, mas que ainda não é muito visível. Esses momentos históricos de transição são perigosos, com muita disputa pelo poder.
Mas, quem leu meu livro com atenção (como o editor do Jornal Nota…), sabe que há uma alegria na minha escrita, uma espécie de anti-melancolia. É também o que eu percebo no desenho da capa, da artista Carolina Nery, que mostra uma árvore frondosa colorida com raízes profundas e elaboradas. Os poemas estão debaixo da terra, na raiz. Eles dão trabalho para vir à tona, para a copa da árvore. Se são bons poemas, ficam na natureza para alimentar gerações.
Luiz – O seu livro começa tratando das suas meninices, passa para o lado feminino e termina tratando de amor e luto. Qual a trajetória que você buscou traçar em suas poesias? É a de uma perda? De um olhar nostálgico?
Renata – Eu dividi os poemas como se fosse uma linha do tempo que vai do mais simples até o mais complexo, com um eu-lírico que parte da criança para se tornar adulto. No final eu reuni os poemas que tratam de morte e luto, mas lembrando que a morte sempre é também fim de ciclo e reinício. Não por acaso eu escolhi um poema de Natal para fechar o livro, um texto dedicado ao povo quéchua do Peru, com quem convivi porque morei lá e onde escrevi 70% do livro. Então essa sensação de perda é o primeiro passo para a reconstrução. Você vê que bem no fundo minha arte é brasileira, e o Brasil no fundo é riso. Ninguém mata o Brasil não.
Luiz – Uma parte do livro é dedicada também ao masculino. Qual o mistério do mundo masculino que sua poesia buscou desvendar?
Renata – Eu diria que o mundo masculino não é muito misterioso pra mim não. Eu consigo assumir um eu-lírico masculino e tenho inclusive contos escritos como se fosse homem. Alguns poetas tem várias vozes muito distintas e eu sou desse tipo. Existe um simbolismo masculino e outro feminino em todas as pessoas e em todas as culturas. E se você quiser me chamar de poetisa, aceito perfeitamente. As pessoas implicam com as palavra poetisa por quê? O problema é que palavras soterradas à força voltam para nos assombrar. Eu sou poeta e poetisa, na hora de escrever vou para um lado ou para o outro, tanto faz. O importante é que o poema traga uma verdade, isso sim é difícil de conseguir.
Luiz – Para a gente adentrar melhor seus poemas, quem você mais leu na vida para ir montando seu imaginário poético?
Renata – Eu passei a infância e adolescência lendo sem parar. Mas agora meu barato é escrever, estou lendo pouco. Atualmente acho que leitura demais pode tirar a minha espontaneidade. Portanto meu imaginário foi todo construído entre os 6 e os 20 e poucos anos. Li bastante os contos de fadas originais (não os da Disney) e mitologia greco-romana. Só recomendo para os fortes, ha ha. Se você soubesse o que realmente acontece com a Bela Adormecida… E como meu avô era um político de esquerda, sempre li os russos. Havia muitos livros de autores da antiga União Soviética na nossa família, contos para crianças e adolescentes, eu nem lembro dos nomes dos autores. E a gente também ia ver circo, teatro e cinema dos russos . Eles têm uma arte profunda e ambivalente.
Luiz – Você tem uma poesia preferida do livro, qual? E por que?
Renata – Meu poema preferido é o primeiro que eu fiz, sentada na mesa da cozinha, em 2015. É o que abre o livro:
Que fizeste com a menina que eras tu?
Aquela da alegria rosa
Das asas miraculosas
Mataste? Confessa!Foi, não foi? Seu corpo jaz na escrivaninha
Com as certidões e os boletos
Debaixo de espessas lamúrias
E de encontros azarados
Menina dolorida e desmembrada
Peço imensíssimas desculpas
Por não ter te realizado.
A ideia desse poema é muito antiga na minha vida e comum a várias pessoas: a sensação de que você deixou uma vida melhor no passado, na infância. Eu saí desse estado mental, inclusive por causa da publicação do Melancolicamente. Com o livro, a menina que eu fui se realizou e começou uma nova jornada. Mas o poema continua valendo. Todo poema se refaz a cada leitura, o caminho dele é infinito. Eu gostaria de republicá-lo também trocando os gêneros porque esse poema vale para todas as pessoas, embora essa sensação de não realização seja mais comum nas mulheres por razões culturais.
Luiz – Pra finalizar, a pergunta que fazemos pra todo mundo: quais os 5 livros que mudaram a sua vida?
Sou incapaz de dizer. Não gosto da ideia de parecer erudita, inclusive porque excesso de erudição não necessariamente cria bons poetas. Há poemas da nossa música brasileira que tiveram influência definitiva na minha vida e eu os escutava, eu não os lia. Eu tenho uma dica pra galera que está na comunidade do Jornal Nota com interesse em literatura: todas as palavras do mundo são poéticas. Toda criança é poeta. E a fala da criança é especialmente poética antes da alfabetização. Vai ver os poetas são os malucos que mantêm esse estado de assombro com tudo o que existe, esse olhar infantil. Fora isso, pra quem já escreve, só digo o seguinte: continue!