O Cochilo de Deus:  Raïssa Lettiére retrata  família em momentos históricos diferentes após “cochilo” de Deus

Após criar o mundo em seis dias, o mito de Gênesis relata que Deus descansou e viu que tudo o que havia criado era bom. No entanto, Raïssa Lettiére brinca com essa narrativa mítica, sugerindo que, na verdade, o criador do mundo resolveu tirar um cochilo. O livro, publicado pela Editora Faria e Silva, apresenta uma narrativa de vários personagens em diferentes épocas, com toques de realismo mágico, possivelmente, influência de Cem anos de solidão, do querido Gabo. Além disso, a autora abre uma conversa com diversas obras e autores clássicos formando, assim, um mosaico de referências e histórias que são recriadas na sua ficção


Tal foi a história da origem dos céus, da terra e dos oceanos; 

dos seres humanos, desumanos, inumanos, anti-humanos.

No sétimo dia, desanimado, Deus repousou. E então foi a festa. (p.15)

O próprio Deus estava desanimado com a criação, talvez seja o motivo do cochilo e a razão pela qual a humanidade deu errado. No meio tempo do cochilo divino, em cinco partes, somos apresentados à história de uma família em momentos históricos diferentes.  Temos o General Colômbia, seguidor fanático de Simon Bolívar; Yasmin, a qual se casa com um escritor romantico; Adélia e o pintor do deserto; Paloma e o poeta do deserto e a Sylvia P que se casa com o Sofredor. Cada narrativa é ímpar e pensa sobre a vida, a partir da angústia humana. Além disso, todos, de alguma forma, estão em constante movimento com as artes, seja a pintura, poemas ou romances. Estão, também, interligados com a mítica árvore da vida, citada em Gênesis.

Uma árvore dançante rodopiando pela pintura

desperta estrelas mortas e cadentes

e embaralha a ordem do universo.

Na vastidão do deserto,

o sonho do artista transborda da moldura,

pincela, para além da solidão, fontes de água fresca,

que preenchem o vazio ao redor da Árvore da Vida, 

enraizada pelas areias do Éden,

orvalhadas de pó de estrelas, 

no meio do deserto do Bahrein.

De todas as histórias, destaco a Sylvia P. Ela é filha de Paloma e de um desconhecido poeta do deserto. A menina, desde cedo, tem obsessão por versos e estrofes e faz, literalmente, da poesia o seu alimento. É atormentada pelo acidente da mãe cuja cabeça rolou e se perdeu pelo bueiro da cidade. A autora, possivelmente, inspirou-se em Sylvia Plath, poeta estadunidense, entre outras mulheres escritoras góticas inglesas do século XIX para criar sua personagem. O Sofredor, companheiro de Sylvia, diz, inclusive, que “havia algo de muito pulsante dentro dela, uma beleza dolorida que me lembrava as poetas e autoras inglesas densas que minha irmã me apresentava à noite […]” (p.147)

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Por meio das narrações das personagens, Lettiére nos convida a refletir: o livre arbítrio foi uma dádiva de Deus ou é uma cilada? Se Deus está cochilando, significa que estamos à deriva, sem supervisão.  O homem está, como sugere Sartre, “sozinho – e sem desculpas -, o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; mas livre, porque lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer.” Se Deus está cochilando e, parece que ele esqueceu de acordar, então, criemos. Façamos arte.

Não há maná.

Deus não mais alimenta suas criaturas.

Ele dorme enquanto sacio minha fome com areia e pó de estrelas (p.140)

Quem é Raïssa Lettiére? 


Formada em Letras e Literatura pela PUC – Campinas, fundou a Verus Editora, vendida em 2010 ao Grupo Editorial Record, onde atuou como editora-executiva e atualmente é consultora de aquisição, tendo, ao longo dos anos, lançado vários autores conhecidos do público leitor. Em 2021, inventou a história de publicar suas próprias histórias, e assim surgiu De folhas que resistem , uma coletânea de contos, publicada pelo selo Biblioteca Azul, da Globo Livros. O cochilo de Deus é seu primeiro romance. Compre o livro aqui.

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