“Tudo um pouco mal”: crônicas que mesclam sensibilidade e delicadeza em diferentes contextos

Num de seus poemas, Adélia Prado escreveu “tudo que a memória ama fica eterno”. Diante desse verso, pode-se compreender que a memória é capaz de eternizar certos momentos, já que, invariavelmente, não consegue dar conta de todos os fatos. No entanto, a forma mais segura de preservar esses momentos é transcrever as histórias para o papel de modo que elas não se percam no esquecimento, principalmente porque o ser humano tem a necessidade de narrar, e, com isso, apreender mais sobre si e o mundo, como um exercício de autoconhecimento constante.

É assim que “Tudo um pouco mal” se conecta com os leitores. Com uma escrita leve, mas refletindo sobre assuntos de forma precisa, o livro da autora amazonense Myriam Scotti, publicado pela Editora Patuá, em 2024, reúne 34 crônicas com diferentes temáticas. Nos textos, escritos no decorrer dos últimos quatro anos, é possível conhecer fragmentos da infância até a fase adulta, visitando sua paixão pela escrita e pela literatura, as cobranças diárias e os dilemas existenciais, os desafios da maternidade, as relações familiares e as amizades, além de temas contemporâneos. Apresentam, também, uma série de situações que demonstram coragem, cumplicidade, saudade, honestidade e, sobretudo, afeto.

“Por não encontrar à minha volta algo ou alguém para me identificar, para me compreender, busquei nos livros as respostas para todas as questões que me rondavam, as quais não permitiam que eu seguisse em frente. As histórias soavam mais verdadeiras que a realidade à minha volta, onde as mulheres pareciam estar felizes-conformadas com suas escolhas. Mas elas não me representavam nem me acolhiam. Não à toa, as queixas das personagens se confundiam com as minhas e, assim, entreguei-me completamente à literatura, hoje o meu farol e filosofia de vida” (SCOTTI, 2024, p. 69).

Por isso, além de se debruçarem sobre os fatos do cotidiano, entre tantas características das crônicas, está a possibilidade de se aproximarem dos leitores por meio de sentimentos que, normalmente, são compartilhados na intimidade. Além disso, elas conseguem despertar o olhar para aquilo que é corriqueiro dando uma nova dimensão ou sentido, inclusive, para determinadas situações que poderiam, em geral, passar despercebidas.

Relatar experiências e observações sobre o mundo, assim como revelar um pouco dos anseios e inquietudes também são matérias recorrentes das crônicas, por isso podem assumir um caráter mais intimista. É durante a leitura que a comunicação se estabelece, ocorrendo a identificação dos leitores em maior ou menor proporção. Embora cada um deles sinta de forma diferente, é possível perceber quando elas estão envolvidas por sensibilidade e delicadeza.

A leitura de Tudo um pouco mal pode ser feita de maneira ininterrupta ou pausadamente, tanto para conhecer outras vivências quanto para perceber as nuances e as escolhas que perpassam a escrita da autora. Há, ainda, um encadeamento de ideias bem estruturado, dialogando, em vários momentos, com diversos escritores como Clarice Lispector, Virgínia Woolf, Annie Ernaux, Roland Barthes, Rosa Montero, Augusto dos Anjos, Louise Glück, Buyng-Chu Han e outros, facilitando a imersão por completo nas crônicas.

Leia também: Vender a alma no cotidiano: 13 crônicas curtas de Clarice Lispector

“Tudo um pouco mal foi escrito ao longo dos últimos quatro anos. Algumas vezes, escrevi com tinta de leite, outras com tinta de sangue, mas escrevi essas crônicas, sobretudo, com a tinta mais forte que possuo: a da saudade. Ora viajando pela infância e adolescência, ora revisitando um passado recente, escrevi como quem reencontra uma amiga e com ela compartilha reflexões sobre a vida” (SCOTTI, 2024, p. 76).

Não é incomum dizer que as crônicas carregam muito essa percepção – a de se estar sozinho e, ao mesmo tempo, acompanhado. Mesmo distante, há uma voz que transporta o leitor para um tempo e lugares reconhecíveis, despertando sensações que lembram uma boa conversa entre amigos.

Sobre a autora:
Myriam Scotti nasceu em 1981, em Manaus (AM). Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Amazonas, é mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP e, desde 2014, dedica-se exclusivamente à escrita literária. Publicou livros infantis, romances e poesia. Tudo um pouco mal é sua estreia no gênero crônicas. Seu romance “Terra Úmida” foi vencedor do Prêmio Literário de Manaus 2020. Em 2021, seu romance juvenil “Quem chamarei de lar?” (editora Pantograf) foi aprovado no PNLD literário e escolhido pelo edital Biblioteca de São Paulo. Em 2023, lançou o livro de poemas “Receita para explodir bolos” (editora Patuá). Foi finalista do prêmio Pena de Ouro 2021 na categoria Conto. No ano passado, ficou em segundo lugar na categoria conto do prêmio Off Flip.

Especificações:

Editora Patuá
Ano: 2024
14X21 cm
76p.
ISBN 978-85-8297-893-1
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