“Raiva – nós temos um cão que morde”: peça aborda a violência nas relações sociais

Thriller cômico “Raiva – nos temos um cão que morde” traz Renata Gaspar e Georgette Fadel em personagens que caminham na linha tênue que separa a civilização da barbárie.

Dando continuidade à pesquisa sobre a violência que permeia as relações cotidianas, a DeSúbito Cia estreia Raiva – nós temos um cão que morde, segunda parte da trilogia da autora sobre o tema. Com direção de Ricardo Henrique, e dramaturgia de Carla Zanini, que atua ao lado de Renata Gaspar, Georgette Fadel e Roberto Rezende, a temporada acontece entre os dias 7 e 22 de dezembro, com sessões aos sábados, às 20h; e, aos domingos, às 19h00, no Galpão do Folias.

Escrita por Carla Zanini, dramaturga cofundadora do grupo, a peça inicia com duas irmãs, Inês e Mirella, artista e professora, donas de um novo espaço cultural, tentando enterrar uma cabeça após seu cão ter mordido acidentalmente uma criança. “A narrativa se desenrola com doses de humor e suspense. No início não sabemos a quem pertence aquela cabeça, que canta e onde a história irá nos levar. O patético, o desespero e o absurdo guiam as personagens que estão envolvidas nesse cordão de violência – metaforizado na raiva de um cão – que precisam destruir para recomeçar”, conta Carla.

Zanini e Renata Gaspar interpretam as irmãs, que, na tentativa frustrada de dar conta dos problemas da escola e manter o espaço cultural aberto, ainda precisam lidar com os inúmeros conflitos desencadeados após o acidente com o cão e a criança. E, adicionando uma camada extra de confusão, eventos surreais acontecem e outras personagens aparecem e assumem um tom mais “radical”, como Tia Gilda, vivida por Georgette Fadel, uma professora perseguida que planeja um ato revolucionário na escola onde trabalha. Soma-se ao elenco o ator Roberto Rezende, um oficial do controle de animais responsável por prender o cachorro, supostamente diagnosticado com Raiva. 

“A violência cotidiana permeia as ações das personagens em diferentes graus, sejam como agentes ou vítimas. Essa personagem vivida pela Georgette, é uma professora cansada da violência sistêmica sofrida dentro e fora da sala de aula e que se sente violada pela forma como é tratada. Ela percebe uma onda perigosa que se aproxima na educação e quer reagir a isso, mesmo que de forma polêmica. ”, comenta a dramaturga.

Sobre a encenação

O espetáculo mistura elementos realistas e absurdos. As ações propostas pela dramaturgia não são encadeadas de maneira linear, em sua estrutura há diversos cortes que promovem deslocamentos na linha cronológica, mas tendo como elemento catalisador a situação do cachorro que mordeu a criança. A ação dramática avança conforme os conflitos e impasses das personagens se intensificam. A dramaturgia se desdobra e se aprofunda a partir de horizontes temáticos políticos e sociais, que enfatizam as contradições das personagens.  

“O texto foi escrito em um tempo de violência e polarização extrema do país. Foi claro para todos nós, o quanto esse momento influenciou na violência privada de nossas vidas.  Nossa sociedade é tão inflamável que qualquer um se sentindo contrariado, injustiçado, hostilizado, humilhado ou criticado pode explodir e responder na mesma moeda, mesmo entre amigos, familiares e vizinhos”, explica o diretor. 

Neste sentido, a direção opta por uma sensação tensa ao confinar as personagens em uma única área deste espaço cultural. O cenógrafo Fernando Passetti criou um cômodo-depósito deste espaço cultural, bem “concreto e real”, onde acontecem todas as ações da peça, mas também com muita vazão para imagens absurdas e surreais que o texto evoca, facilitadas pelos vãos, texturas, cores e materialidades propostas pelo cenógrafo. Colaborando com os contrastes da peça, a luz construída por Dimitri Luppi auxilia na atmosfera realista e delirante que permeia a história.  Os figurinos de Muca Rangel e Ana Luiza Fay acentuam com força, realismo e humor os contornos e contradições de cada personagem. E a trilha e dramaturgia sonora de Mini Lamers que colabora fortemente com o suspense, ruídos e tensões internas e externas de toda história, suas personagens e relações.

“Nos mantivemos bastante fiéis ao texto. E algo bem interessante na dramaturgia é que não vemos os acontecimentos em si. Na verdade, é tudo contado pelas personagens, que vão partilhando as informações e acontecimentos aos poucos. Com isso, os espectadores ganham um espaço amplo de imaginação, diante de um conflito imenso de uma história vivida mas principalmente narrada. Tudo isso potencializado pelo forte jogo e atuação do elenco”, diz Ricardo. 

Sobre o texto

O texto de Raiva – nós temos um cão que morde nasceu em 2019, quando o país enfrentava o começo das sucessivas violências e tensões sociais que se agravaram com a chegada da pandemia. Na área de Educação, especificamente, a DeSúbito teve acesso a uma pesquisa da Associação dos Professores do Estado de São Paulo que apontava uma escalada da violência nas unidades de ensino: naquele ano, mais da metade dos professores (54%) alegaram já ter sofrido algum tipo de agressão. Entre os estudantes, em 2019, 81% relataram saber de episódios de violência na própria escola. 

Ao mesmo tempo, o setor cultural sofreu bastante no último governo. Importantes marcas de gestão Bolsonaro foram o completo esvaziamento da pasta, a extinção do Ministério da Cultura, o desmonte da Agência Nacional do Cinema (Ancine), as acusações de censura, as citações nazistas, a alusão à ditadura militar, e a moral religiosa para a escolha de projetos a serem financiados.

E embora o país esteja em outro momento, e sob outro governo. Ainda resta o ódio e a polarização extrema. Ainda há estados e municípios governados por ideologias que violentam e desmontam importantes projetos sociais e avanços da educação e da cultura. Ainda há um país inflamado e violento, com imensa dificuldade de pacificação. 

Por isso, a peça é um retrato metafórico da desestabilização relacional e da violência psicológica e social generalizada. Por meio de humor sarcástico e ironia, o espetáculo é um reflexo do ódio e da tensão de um país que tenta duramente se reconstruir e se reerguer a cada dia.

Dramaturgia – trilogia

Afeto, Raiva e Coragem” é a trilogia escrita por Carla Zanini para a DeSúbito Cia, da qual a dramaturga é cofundadora. Algumas reflexões fundamentais têm permeado suas escolhas e estão presentes nestes trabalhos, como as tentativas de lidar com as violências que nos cercam, seja por questões políticas, familiares, de gênero, de saúde mental, entre tantas outras.

Além disso, todas essas peças têm em comum o fato de partirem de situações privadas para falar sobre uma experiência pública e coletiva; de promoverem um jogo intenso e constante de contradições sociais, políticas e afetivas; e de focarem em personagens mulheres que enfrentam as regras com as ferramentas que possuem, mesmo que estejam “aprisionadas” dentro de um espaço ou colapsadas em seus gestos, desejos e atitudes extremadas. 

Sobre a DeSúbito Cia  

O grupo nasceu em 2015 na cidade de São Paulo, com atores egressos da Escola de Arte Dramática ECA-USP, para a criação de um espaço de parcerias, intercâmbios e produções artísticas, realização de peças com dramaturgia própria, de autores contemporâneos e uma pesquisa voltada sobretudo para novas formas de escritas e criações cênicas. 

Entre os espetáculos realizados estão: Casa e Nuvem Branca, de Rafael Augusto, direção de Ricardo Henrique (2015); Você Só Precisa Saber da Piscina, de Carla Zanini, direção de Tel Lenna (2017); Coisas que você pode dizer em voz alta, de Ricardo Inhan, direção de Ricardo Henrique (2019); Selvagem, de Mike Bartlett, direção de Susana Ribeiro (2023) e Afeto – Uma história de amor (violenta e difusa) entre mulheres quebradas, texto e direção Carla Zanini e codireção Angélica de Paula (2023). E o próximo é parte da trilogia escrita por Carla Zanini: AfetoRaiva e Coragem.

Sinopse

Duas irmãs, Inês e Mirella, donas de um novo espaço cultural, tentam enterrar uma cabeça após seu cão ter mordido acidentalmente uma criança. Nesse thriller cômico e intenso, em um país mergulhado em violência e tensões sociais crescentes, realidade e absurdo se entrelaçam, levando a trama a direções imprevisíveis e surpreendentes.

FICHA TÉCNICA

Dramaturgia: Carla Zanini 

Direção: Ricardo Henrique 

Assistência de direção: Lilian Regina 

Elenco: Renata Gaspar, Georgette Fadel, Carla Zanini e Roberto Rezende 

Cenografia: Fernando Passetti 

Iluminação e operação: Dimitri Luppi 

Assistência de iluminação: Leo Sousa 

Figurino: Muca Rangel e Ana Luiza Fay 

Sonoplastia: Mini Lamers 

Operação de som: Igor Souza e Henrique Berrocal 

Contrarregragem: Guira Bará 

Preparação de elenco: Felipe Rocha 

Provocação corporal: Rafaela Sahyoun 

Identidade visual: Angela Ribeiro 

Design gráfico: Guto Yamamoto 

Foto: Caio Oviedo 

Produção: Mariana Novais – Ventania Cultural 

Realização: DeSúbito Cia e Ventania Cultural Apoio: Galpão do Folias | Grupo Folias d’Arte

SERVIÇO

Raiva – nós temos um cão que morde
Data: 7 a 22 de dezembro

sábados, às 20h

domingos, às 19h
Local:
Galpão do Folias Rua: Ana Cintra, 213 – Metrô Santa Cecília

Ingressos: R$ 40 (inteira) / R$ 20 (meia entrada) – vendas pelo Sympla, clique  AQUI

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