Na espiral da angústia: “A Casa de Barcos”, de Jon Fosse, é relato solitário sobre amizade, memórias e isolamento

Ler um livro de um autor ganhador do Nobel de Literatura sempre gera uma expectativa de que vamos encontrar algo diferente. Afinal de contas, dentre milhares de escritores renomados de todo o mundo, aquele se tornou escolhido por um grupo de jurados exigente para representar a literatura de um período. Foi com essa expectativa que li o livro A casa de barcos, do autor norueguês Jon Fosse, vencedor do prêmio mais importante da literatura mundial em 2023. Confesso que a leitura não foi em vão; foi uma das minhas melhores neste ano.

A premissa de A casa de barcos

O plot do livro é simples: o narrador-personagem é um homem solitário, sem grandes conquistas profissionais ou pessoais. Ele vive com a mãe e ganha uns trocados tocando em uma banda de músicas tradicionais. Em um determinado dia, ele tem a sua vida pacata virada do avesso ao reencontrar um amigo de infância junto de sua esposa e filhas. Assim, uma série de lembranças e pensamentos aflitivos passam a perturbá-lo a ponto de isolá-lo em casa e ter a escrita como escape. Angústia, amizades, problemas de comunicação, triângulos amorosos são temas abordados no romance de forma magistral.

Uma história em espiral

A grande sacada de Jon Fosse ao escrever este romance é mostrar, por meio da escrita, como funciona a mente de alguém angustiado. É como se nada mais pudesse acontecer na vida além do fato gerador da angústia e a sensação de padecer nesse looping eterno de aflição. Em inúmeros trechos do livro, a frase “uma angústia tomou conta de mim” se repete, inclusive mais de uma vez na mesma página.

Essa repetição, que pode parecer exaustiva, revela-se uma ferramenta narrativa engenhosa. Ela captura a obsessão do protagonista e desafia o leitor a acompanhar um fluxo de consciência que, mesmo aparentemente estático, avança sutilmente. Com frases curtas e enxutas, Fosse constrói uma espiral narrativa que, como um mantra meditativo, exige paciência e atenção plena. A qualquer instante, algo pode emergir para desestabilizar ainda mais um terreno já instável.

O suspense da não-linearidade de A casa de barcos

Por se tratar de uma história contada em fluxo de consciência, A casa de barcos se passa em diversas linhas do tempo, misturando episódios de um passado mais distante e de um mais recente. No entanto, é como se os personagens, sobretudo as femininas, se repetissem, sendo apenas ecos ou espectros orbitando entre os subentendidos que emergem da complexidade das relações masculinas na narrativa. Inclusive, como leitores, nunca podemos enxergar o que acontece de forma clara. O suspense do que aconteceu ou pode acontecer é mais um elemento de angústia e nos envolve como uma noite infinita escandinava.

Compreendo que a leitura não é para quem busca respostas fáceis ou narrativas lineares, mas para quem se dispõe a mergulhar na complexidade da experiência humana. Mas é inegável que se trata de literatura ficcional de alta qualidade, sofisticada ao ponto de envolver mentes e corpos de leitores a ponto de sincronizá-los ao movimento da história. Sem dúvida, A casa de barcos merece os louros dos mais prestigiosos prêmios literários – e, para minha surpresa, a angústia deu lugar ao fascínio.

Sobre o autor

Jon Fosse nasceu em 1959 na Noruega. Autor prolífico, tem se aventurado por diversos gêneros: romance, poesia, conto, ensaio, literatura infantil e teatro — com mais de quarenta peças encenadas em cinquenta idiomas —, além de traduzir literatura estrangeira para o norueguês. Em 2023, Fosse recebeu o prêmio Nobel de literatura pelo conjunto da obra.

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