“O Voo das Libélulas e outros contos inflamáveis”, de Kênia Marangão: quando o fantástico encontra o mais brutal da realidade

Livro de estreia de Kênia Marangão reúne 18 contos que transitam entre um realismo seco, duro, violento e um espaço onírico que salta desses centros do real para o campo do fantástico

“Os nomes contam histórias e histórias guardam 
verdades que nem sempre se quer ouvir”

O dramaturgo, ator e poeta Michel Melamed, em seu espetáculo de estreia Regurgitofagia, descreve uma insólita relação de amor: “Essa é a história da borboleta que se apaixonou por um soco. O amor platônico de uma borboleta por um soco.” Seu objetivo? Estranhar o amor, a borboleta e o soco, criando um espaço poético em que todas as coisas podem conversar juntas, sem hierarquias, e sofrer os danos que só a poesia pode causar. Acredito que um procedimento semelhante e até com uma potência maior e mais clara pode ser visto nos contos de Kênia Marangão. 

Eu trouxe essa relação entre borboleta e soco para falar do livro de contos O Voo das Libélulas e outros contos inflamáveis, da escritora paulista formada em artes plásticas, Kênia Marangão, lançado pela Editora Patuá, em 2024. Publicando seu primeiro livro de contos, Kênia reúne 18 contos que transitam entre um realismo seco, duro, violento e um espaço onírico que salta desses centros do real para o campo do fantástico. 

Por meio de elementos cotidianos, Kênia explora não só alguns de nossos fantasmas, lugares inabitados dentro de nossas subjetividades, como também dá voz ao campo do imaginário, talvez o ponto alto destes contos, uma vez que a imaginação parece ter sido sugada na literatura contemporânea pelas narrativas de autoficção. 

Minhocas Invisíveis

Caso esteja difícil de compreender o que estou traçando, acredito que tudo ficará mais claro quando falarmos do primeiro conto do livro chamado Minhocas Invisíveis. O conto traz a história de uma moça cuja mãe acabou de falecer e que agora mora apenas com seu pai. Diante do varal de roupas, a mulher deita para descansar e, ao olhar para o céu, observa diante de si essas “minhocas transparentes” que aparecem nas suas retinas. No caso, a autora fala das chamadas “moscas volantes” que são pontinhos pretos que aparecem quando olhamos para a luz. Essas moscas são normais, aparecem e somem  e são formadas por pequenas partículas que se movem com o olhar e podem ser descritas como pontos, linhas ou teias de aranha”. 

A partir deste pequeno elemento cotidiano compartilhado por muitos, Kênia abre espaço para tratar da solidão desta moça enlutada:

“Foi um alívio saber que outras pessoas viam o que eu via, ou poderiam ver, se quisessem. Se apenas eu visse, seria mais sozinha do que já sou”. 

Assim, diante da solidão de um universo que nos isola e nos oprime cosmicamente, o conto parte desta miniatura do real, as “minhocas invisíveis”, para conectar esta jovem com o mundo: “as minhas me incluem no universo”, diz. 

Leia também: “Areia não é sujeira”: Pâmela Rodrigues transforma cotidiano íntimo em poesia feminista


De repente, somos atravessados por um evento fantástico em que a menina, boia no ar “sem tocar o mundo nem fazer parte dele”. Percebemos aqui uma intertextualidade direta com o romance Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez, em que a personagem Remédios, a Bela, também é tragada pelos céus:

“Enfim, chegou o dia em que esta figura quase mitológica, despede-se do mundo de uma maneira tão surpreendente quanto ela mesma. Foi quando numa tarde de março, na presença das mulheres de sua casa, após um misterioso sopro de ventos, Remédios, a Bela começa a levitar, dizendo adeus com as mãos e se perdendo no ar.”

Diferentemente, porém, a personagem de Kênia levita aos céus, mas continua a escutar o que se passa na terra: “Nas alturas da minha terra sem terra alguma, escutei meu pai me chamar. Maria, por que não está fazendo almoço?

Ao ler O Voo das Libélulas, confesso, fiquei, em um primeiro momento, sem conseguir compreender o que estava diante de mim. Quais eram as referências da autora, me perguntava. Isto é bom, pois como diz o grande escritor piauiense Assis Brasil, uma obra verdadeiramente moderna é aquela que desaparelha leitores e críticos e que os deixam, por um instante, sem saber se estão lendo o que estão lendo.

No meu caso, encontrei o caminho de leitura ao relacionar a percepção que tive de Cem Anos Solidão, de Gabriel García Marquez,  à própria epígrafe do livro em que a autora convoca o autor colombiano para compor esta relação entre o real e o imaginário: “fascinado por uma realidade imediata que era mais fantástica do que o vasto universo de sua imaginação, ele perdeu todo o interesse no laboratório de alquimia”. 

Estava, enfim, pronto para mergulhar em O Voo da Libélula.

Estranhos 

Filme: O Duplo (2013)

Um outro conto interessante que podemos destacar é “Estranhos”, em que uma mulher acorda e percebe que está deitada com um homem desconhecido ao seu lado. Ao levantar da cama (e deliberadamente vou repetir estas palavras) estranha a estranha familiaridade desconhecida que aquele ambiente lhe acompanha. Diante de uma cidade contemporânea, em que todos os espaços são similares, é difícil se reconhecer através dos lugares que visitamos, todos sem origem e quase sem marcas próprias de individualidade.

Trancada no banheiro, ela vislumbra de soslaio uma imagem sua: era outra, de cabelo raspado e espetado, músculos saltados. Este conto se insere na longa tradição dos fantasmas da outridade que nos assombra, desde O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde, em que a juventude de um rapaz é escondida em um quadro, passando pelo O Duplo (1846), de Dostoiévski e o genial William Wilson (1834), de Edgar Allan Poe, chegando até O Homem Duplicado (2002), de José Saramago. 

No entanto, no conto de Kênia há um outro elemento: toda a materialidade que se apresenta diante de si não condiz com aquilo que a personagem sabe da sua pessoa, então não há nem um sósia a matar, como no caso de Poe, nem um quadro a destruir como em Oscar Wilde nem, pensando agora da perspectiva feminina, um semém da vida ser extraído das costas de seu “outro”, como no caso do filme A Substância (2024).

Cabe a esta personagem, enfim, compreender que: “a solidez se perde no absurdo” e aceitar o impasse: vislumbrar ou não este outro que agora é você? 

O Voo das Libélulas

Para finalizar, trago aqui o conto que dá nome ao livro: O Voo das Libélulas, mais uma das insólitas e fantásticas histórias do livro. O conto revela a história de um rapaz que está fazendo um trabalho de faculdade e, com dificuldade, não consegue avançar. Seu colega de apartamento lhe chama para ajudar nas compras, quando ele começa a passar por uma metamorfose física, tal como Gregor Samsa, do livro A Metamorfose do escritor Franz Kafka. Porém, diferentemente de Kafka que esconde do leitor a metamorfose, Kênia revela essa transmutação diante de nossos olhos:

“Um arrepio desce pela coluna, o peito murcha, o suor invade e surge a substância translúcida, grossa e escamosa que o circunda. Cria-se a bolha que encarcera o corpo e o separa do mundo”

Reparem no recurso linguístico utilizado pela autora para compor a metamorfose: primeiro, ela destaca o “arrepio que desce pela coluna”, em que ainda há um sujeito, mas que já está “sujeitado” pela força que o invade. Surge “a substância translúcida” que “o circunda”, numa transição em que ainda é possível encontrar o eu”. Até que na frase seguinte, o sujeito desaparece e se transforma em “corpo” na medida em que “cria-se a bolha que encarcera” não mais um eu, mas um outro que não é mais aquele sujeito. 

Isto me remete ao ensaio A metamorfose das plantas, do escritor alemão Goethe, autor de obras como Fausto e Os Sofrimentos do Jovem Werther, em que ele destaca que a grande característica da metamorfose é há um devir desta metamorfose na primeira célula dos seres. Assim, há no primeiro elemento a substância do outro. 

Podemos dizer, então, que diferentemente da “transformação” em que um sujeito vira literalmente outra coisa, na metamorfose já há no primeiro elemento um devir do segundo. 

Como exemplo, ele cita o fato de que no caule de uma flor, ainda que não haja flor, já existem os componentes que vão fazer surgir a flor, ou seja, as plantas não se transformam de semente em flores, mas passam por metamorfoses em que na própria semente já há um devir flor. 

Parto disto para destacar que, talvez, esta seja a grande característica e o principal procedimento de escrita de Kênia Marangão: a composição de uma literatura em constante movimento, de um mundo que insiste em não ser e permanecer estável no qual as figuras oscilam, transformam-se e transfiguram-se.

Se isto é assombroso é porque a existência espelha o que a imaginação da autora nos lança. Em O Voo das Libélulas, a existência não é necessariamente caótica, mas ela nos joga num turbilhão que mistura novos tempos, formas, mundos, sujeitos, estados. E talvez não haja outra saída para isso do que lutar com a maior ferramenta de todas: a imaginação. 

O Voo das Libélulas é uma obra que não aceita o mundo como ele é, nem como está sendo, e por isso o imagina muito maior do que cabe nesta coisa frágil chamada real.

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