O gótico contemporâneo de Lúcio Reis Filho em “Lupedan: um mundo chamado Ego”

Bram Stoker definiu em Drácula, de 1897, o mito moderno do vampiro; aristocratas de pele clara que se alimentam de sangue humano para sobreviver e caminhar pela eternidade. Contudo, essa é uma lenda que não cansa de se reinventar tamanho o fascínio que ela exerce sobre a humanidade. De vampiros de corpos brilhantes àqueles que escrevem diários, passando por vampiros roqueiros em crises existenciais, a cultura pop os abraçou. Cada criador dando seu toque às suas criaturas. 

Na literatura brasileira contemporânea temos, dentre outros, André Vianco e seus vampiros portugueses por São Paulo na série que começa com Os Sete, ao que se soma agora Lúcio Reis Filho com o romance “Lupedan: um mundo chamado Ego”, publicado pela CARAVANA. Aqui, o glamour aristocrático é substituído por uma decadência interiorana. 

Daniel Cornélio Lupe, que dá nome ao título, é um jovem recém-saído da adolescência e que está prestes a entrar para a Universidade. Porém, antes de dar esse passo para a vida adulta, ele decide visitar a meia-irmã mais velha na cidade onde morou até o fim do ensino médio, Timburé, no sul de Minas Gerais. Hospedado com essa irmã, no que todos conhecem como a Casa dos Artistas, uma mistura de gerações, bebidas alcoólicas, drogas e prazeres se desenrola, o que muito convém ao belíssimo jovem obcecado pela própria imagem e que, como toda novidade em cidade do interior, atrai a atenção de todos, dando início a um perigoso jogo de sedução. 

Era fácil se perder “nos olhos cintilantes e na pele de mármore” de Daniel, características físicas que compartilhava com a irmã, Hera, assim como os “traços angulosos, o nariz adunco, os cabelos pretos de nuvem passageira”. Entretanto, por trás dos olhos verdes do rapaz e de um estilo Harry Styles que ele tentava emplacar, escondiam-se segredos obscuros e as reais razões de seu retorno à cidade natal, assim como uma insegurança juvenil. 

Desde o início da narrativa sabemos que vampiros existem, mas não como costumavam ser. Há uma degradação que acompanha um mundo contemporâneo em ruínas. Para isso, Lúcio desconstroi o cânone para fazer emergir dos destroços seres que sentem ressaca e precisam de uma coquinha gelada, ao passo que também se rendem “à luz das telas pretas de vidro” e que pensando bem, talvez não estejam tão melhores que nós, compartilhando, inclusive, muitas questões com os reles mortais. “Dândis da Geração Z”, como o autor se refere, tamanha obsessão com a imagem, a beleza e uma suposta elegância que não se sustenta quando olhada mais de perto. 

Daniel, assim como vários jovens, marcava presença em todas as redes sociais, recheadas de selfies, frases de efeito em inglês e um mundo só dele, onde, envolto em uma aura de mistério e atração, racionava as migalhas de afeto e atenção, mesmo que ainda precisasse da aprovação dessas mesmas @. 

Esse jogo estendia-se para a vida real, onde a performance era adaptada à “vítima” e ao contexto. No entanto, o foco da história criada por Lúcio não é a ação, o sangue, a matança, até porque os vampiros de “Lupedan” alimentam-se principalmente das almas das pessoas com as quais se relacionam de forma tóxica e narcisista em que tudo não passa de um jogo de poder. A devoção alheia e o controle como refeição principal e alimento para o ego.

“Os séculos os transformaram em seres quase exclusivamente psíquicos, de uma espécie sedenta de afeto, mas incapaz de amar. No multiverso de algoritmos, avatares e realidades alternativas, eles vivem da beleza e da juventude como se os dias não cobrassem um preço alto.”

Nesse sentido, a narrativa vai pelo caminho da exploração de crises existenciais e de relacionamentos em um mundo tecnológico e hiperconectado, na linha do que a escritora argentina Camila Sosa Villada declarou em uma entrevista recentemente, de que ela acha tudo uma performance e a vida em sociedade uma atuação na qual todos estamos performando a não ser quando se está a sós. 

Trocando de personagem conforme a necessidade do ego, Daniel vai circulando pelas festas, pelas noites de farra, pelos corpos e olhares, enquanto levados pelo desejo, ele incluso, entram em rotas de colisão com outros personagens que vão se criando, como Carmilla e Laura, em “Carmilla: A Vampira de Karnstein”, do irlandês Sheridan Le Fanu, no qual atração e repulsa se misturam.  Mas diferente da narrativa gótica da era vitoriana, a relação moderna entre um vampiro e um humano era, ao fim, uma via de mão dupla que deixa um gosto não de sangue, mas de amargor na boca, o beijo como véspera do escarro, como dizia o poeta Augusto dos Anjos em Versos Íntimos.

Leia também: “O Vampiro Antes de Drácula”: De Polidori a Stoker, conheça as origens do horror vampírico

Ao passo que essas relações vão se aprofundando e confundindo os personagens, túmulos são profanados nas redondezas, me lembrando, inclusive, de um conto da escritora equatoriana Maria Fernanda Ampuero no qual desejo e ira viram um só sentimento. “Escolhidas”, o título dessa história. Mas voltando à história de Lúcio Reis Filho, há também o mistério do passado que assombra Daniel e espalha peças de um quebra-cabeça ao longo da narrativa. Um passado que carrega um segredo e uma dor:

“A nostalgia tem sabor agridoce. Daniel se lembrou do percurso que fazia da escola até a casa verde quase diariamente; das fugas noturnas da vila, que também acabavam ali, e dos retornos furtivos à casa de sua irmã antes do amanhecer. Lembrou-se dos dias felizes, dos jogos, planos e expectativas que nasceram entre aquelas quatro paredes. Do outro lado da rua, o garoto esperou por um sinal de vida. Por um instante, pensou ver a si mesmo saindo pelo portão com seu melhor amigo, mas a miragem, como se pertencesse a uma vida passada, era a cena de um filme que não se repetiria.”

Indo um pouco mais para a estrutura do livro em si, Lúcio, aqui em “Lupedan”, conta uma história na qual o vampiro literal e o vampiro metafórico se encontram, sendo possível trilhar os dois caminhos, que na verdade não passam de duas faces da mesma moeda. 

Ao mesmo tempo em que ele traz a metáfora do vampiro, como aquela pessoa egoísta, manipuladora, que suga nossa energia, tira nosso equilíbrio, que muitas vezes é, inclusive, chamado de “vampiro emocional”, ele também coloca presas nesse vampiro, o tornado literal, entorpecendo suas vítimas em um mix de dor e prazer sonolentos. Porém, com um folclore, um cânone, que não se preocupa em explicar ou justificar, a obra ganha um toque de realismo fantástico, muito em linha do que o horror latino-americano faz, assim como o próprio gótico do qual o autor reivindica. O ar de mistério persiste e se recusa a uma explicação lógica. O mundo é desta forma e seus personagens precisam lidar com ele, não o entender, assim como o leitor não pode se apegar a certas perguntas, mas se deixar levar.

Lúcio também aposta no erotismo e na sexualidade:

“Ao som de Cameo Lover, que adicionou à playlist porque a Kimbra o inspirava, Britney teve a ideia de prolongar a sessão e esquentar o clima, fazendo dela um ensaio erótico. O modelo parecia desafiá-lo a isso, com os olhos cintilantes em seu pescoço. O fotógrafo estava prestes a fazer a proposta quando a porta se abriu.”

Por sinal, conforme o exemplo acima, referências musicais permeiam toda a obra. Bauhaus, Lou Reed, Secos e Molhados, ABBA, Madonna, Revelação, Letrux e até uma cena de Daniel dedilhando Debussy no piano (entendedores entenderão) dão uma dinamicidade à narrativa, com algo sempre tocando ao fundo. Dá para montar uma playlist e tanto. 

E não só uma playlist, na verdade, já que o livro também traz muitas referências a outras artes, como pintura, art pop, cultura pop, referências literárias, pois é claro que Daniel seria fã de Bukowski, assim como outros personagens utilizam referências à Freud, Kafka e etc para se vangloriar de uma suposta erudição. 

Referências ao cinema também estão na narrativa, com filmes de terror como “Subspecies”, “Morte do Demônio” e dando um toque de ironia, ao clássico “Drácula”, de 1931, com Bela Lugosi no papel do vampiro, para Daniel, “o Drácula definitivo”.

Ainda falando sobre Drácula, mas retomando a literatura, uma festa à fantasia improvisada dá lugar ao baile de máscaras presente tanto em “Drácula”, quanto na narrativa do irlandês Sheridan Le Fanu, que especialistas apontam como uma história na qual Bram Stoker teria se inspirado para a elaboração do seu vampiro, hoje clássico. 

Lúcio, com tudo isso, parece buscar adaptar o gótico para a contemporaneidade. Trazer um ar de jovialidade, com problemas das novas gerações, como o vício em telas, a obsessão pela imagem, problemas de identidade e de aceitação, inclusive da própria sexualidade. Enquanto mistérios rondam, ao invés do vilarejo, a cidadezinha do interior de Minas.  

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Sobre o autor:

Lúcio Reis Filho é formado em História e Artes Visuais, com Doutorado em Comunicação. É professor, pesquisador e autor de diversos artigos e obras literárias. Em 2016, recebeu o Prêmio Strix na categoria melhor conto de horror; em 2021, o Prêmio de Artistas e Trabalhadores da Cultura de Minas Gerais.

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