Em “Recontagem”, os defeitos do sistema eleitoral americano são mostrados com ironia

A cada quatro anos, boa parte de nós se pergunta: “como a chamada maior democracia do mundo tem um sistema eleitoral tão arcaico?”. “Recontagem” (Recount, 2008), o telefilme criado pela HBO e disponível no MAX streaming, reconstrói a disputa entre o Al Gore, do partido Democrata, e o republicano George Bush ao longo de cinco semanas, da apuração até o resultado final. 

Naquela noite de 07 de novembro de 2000, todos os veículos de imprensa noticiaram que o vencedor sairia dos votos do estado da Flórida, até então, governado por Jeb Bush, irmão do candidato à presidência. Nos Estados Unidos, os votos dos eleitores são convertidos em “delegados”. Quem atingir 270, torna-se o presidente. Como existem 50 estados, os delegados são determinados pelo número da população. 

Confusos com as cédulas, um grupo de idosos alegavam terem votado no candidato errado. Isso foi a fagulha para tocar fogo no paiol. Em horas, Gore foi dado como perdedor. Ligou para Bush parabenizando. Foi avisado do erro da contagem. Ligou de novo para o candidato republicano para tirar o reconhecimento da derrota. E botou um time de advogados, liderados por Ron Klain (Kevin Spacey), seu chefe de gabinete, para reverter o placar. Bush, o governador da Flórida, chamou seu secretário de estado, James Baker (Tom Wilkinson) – uma função parecida com a secretaria de Justiça no Brasil –  para jogar a favor do irmão. 

Em filmes políticos, geralmente, há muita exposição, diálogos e cenas concentradas em espaços claustrofóbicos. Manejar a tensão, emoção e suspense, especialmente em casos reais, exige dupla força. Escrito por Danny Strong, com direção de Jay Roach, “Recontagem” equilibra a velocidade daqueles acontecimentos com um estilo documental. A câmera está sempre nervosa, à espreita, buscando qual vai ser o próximo passo de um embate que prometia jogar o país no limbo. Toda a exposição do caso é feita sem perder a fervura, tratando de adicionar os elementos que montaram a história sem que o resultado final importasse tanto. A cena onde Ron Klain descobre por meio de seu assessor como a contagem funciona é brilhante justamente por apresentar as deficiências do sistema como um problema social. 

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A contagem é feita por máquinas, não manualmente. As pessoas precisam “furar” os nomes dos candidatos na cédula. Idosos têm menos força, logo, os furos não eram totalmente feitos, ficando uma ondulação. Cada estado americano julga se conta ou não essa “ondulação” como voto.

Em outro condado, um homem negro – e democrata – foi impedido de votar porque seu nome constava em uma lista de pessoas condenadas. Esse homem, um pastor, nunca havia sido sentenciado. O impedimento aconteceu porque o estado da Flórida tinha elaborado a tal lista sem se preocupar com homônimos, impedindo quase 20 mil pessoas de votarem. 

A diferença entre Al Gore e Bush chegou a 154 votos. E poderia ter sido ainda menor se a recontagem não tivesse sido embargada. Afinal, quem era o vencedor? 

À época, Gore era vice-presidente de Bill Clinton, que tinha enfrentado uma tempestade moral por se envolver com a estagiária. Bush, governador do Texas. O discurso do republicano, claro, focava na volta da decência à Casa Branca. Muitos outros fatores entram nesse novelo de “Recontagem”. E boa parte deles envolveu a controversa secretária de estado Katherine Harris, em uma inspirada interpretação de Laura Dern. 

Se a boa trilha de Dave Grusin lembra muito os temas de “A Conversação” (The Conversation, 1974) e a piscadinha para “Todos os Homens do Presidente” (All the President’s Men, 1976) pareça inevitável, o charme do telefilme da HBO está em desatar os nós da história sem tomar um lado. Jay Roach pode ser um democrata. Ou não. A falta de gordura do filme, focado em apresentar cada ponto de virada com uma certa ironia e sem descambar para óbvia teoria da conspiração, traduz um futuro que teima em se repetir. “Stop the count“, baforou o republicano Donald Trumpdiante da derrota iminente para o democrata Joe Biden, em 2020. Quatro anos depois, eleito novamente, a indignação com as urnas e as teorias de fraude sumiram da boca de Trump…

Por isso, assistir “Recontagem” ainda na esteira do pleito, mostra como funciona um ciclo. Especialmente no final, quando Al Gore reconhece a derrota. Ou quando James Baker confessa ter sido do partido democrata e mudado de lado por questões alheias à ideologia. Parece familiar, né? Olhar o passado nos faz ter uma sensação estranha em relação ao futuro. A verdade é que aquela pergunta – “como a chamada maior democracia do mundo tem um sistema eleitoral tão arcaico?” – não precisa ser respondida agora. A história vai recontar.

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