As relações entre terra, identidade e memória quase nunca são pacificadas. A sensação de ser estrangeiro aqui como em toda parte, como diria Fernando Pessoa, e o desejo de fazer parte de um grupo que nos acolhe, fazem parte de uma luta constante entre quem somos e o que nos é imposto pela cultura, e o que podemos transformar do mundo. Esta é a base que constroi o filme Caracas, novo longa-metragem do italiano Marco D’Amore.
Na história, entramos em contato com dois personagens distintos e marcantes: um conhecido escritor napolitano retorna à sua cidade natal após uma longa ausência e encontra um sujeito chamado Caracas. Através de uma mistura entre tempos, memórias e ficção, este escritor reconhece em Caracas um velho amigo conhecido que, outrora era um skinhead neofascista, mas que agora está se convertendo ao islã.
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Temos então uma interseção entre duas crises de identidade. A primeira delas é a do escritor que retorna à terra e vê como tudo se transformou drasticamente. De um lado, a pobreza de sua época, que possuía até certa poesia nostálgica, se transforma em desigualdade e violência. Chegando na velhice, ele decide parar de escrever porque diz não querer mais saber do mundo. Mas de que mundo?
É quando ele entra em contato com um outro lado de suas memórias que são ressignificadas no presente: as complexas questões de imigração, principalmente com árabes do norte africano que sofrem com o aumento do neonazismo por brancos racistas conhecidos nos Estados Unidos como “white trash”.
A segunda crise de identidade está na construção de Caracas. Uma vez solitário, o homem encontrou entre os supremacistas brancos uma forma de defender sua nação e sua cultura. Porém, ele começa a ver como o grupo não é um mecanismo de autodefesa, ao contrário, há ali uma relação de poder cujo resultado é destruir todos os diferentes, aniquilar aqueles que supostamente estariam “tirando seus direitos”. É quando Caracas, que ganha esse nome porque finge que veio da cidade venezuela, encontra Yasmina, uma mulher de origem árabe com quem trava um relacionamento conturbado.
O panorama, então, é o entrecruzamento dessas duas figuras em uma Itália que oprime e segrega imigrantes e que, por conta disso, encontram em suas comunidades formas de sobreviver. O escritor, celebrado pelas elites que detesta, encontra neste mundo também um novo acolhimento. Yasmina, então, junta-se à dupla e tenta se desintoxicar das drogas, porém precisa encontrar sua identidade árabe e italiana diante do jogo que se dá entre a tradição islâmica e os modelos ocidentais.
O melhor do filme está na composição do roteiro e das escolhas estéticas: o uso da metaficção em que o escritor escreve enquanto vive e relembra, sobrepõe camadas de realidades em que ficção e ficção dentro da ficção se fundem. A violência, então, aparece como a-histórica, uma manifestação torpe a qualquer tempo.
Caracas, então, se realiza nas fronteiras de gênero, com uma pitada de cinema noir ressaltando o aspecto suburbano de Nápoles. Assim, o filme escapa de ser apenas retrato, mas se torna também um motor de construção de figuras que pintam o cenário desta cidade antiga, nova, pulsante e caótica.
Temos em Caracas o melhor do cinema italiano com um gostinho de thriller noir.
Filme assistido durante o Festival de Cinema Italiano 2024!
Veja o trailer completo: