Uma série clássica de gangsteres com um elenco e equipe de produção lotados de grandes nomes, aclamação crítica quase universal, o mais perto de perfeição histórica que a HBO chegou em décadas, e uma coleção de prêmios e nomeações. Esse é o elevator pitch para descrever Boardwalk Empire, um dos maiores dramas da história da HBO, cujo episódio final completou 10 anos no final de outubro.
Uma série que recebeu menos apreciação do que deveria, com frequência sobrepujada pelo sucesso de outras produções imensamente populares de sua época, como Mad Men, Breaking Bad e Game of Thrones, com os quais dividia audiência, Boardwalk foi imensamente aclamada em sua época, mas ainda é desconhecida por muitos que não estavam prestando atenção na época em que foi ao ar. A série é uma aula em escrita dramática, é brilhante e divertida, e fica com o espectador muito tempo após seu fim – e é exatamente por isso que estamos falando dela dez anos depois da season finale.
O que é Boardwalk Empire?
A série foi criada por Terrence Winter, inspirada no livro de não-ficção homônimo de Nelson Johnson sobre o famoso chefe do crime organizado de Atlantic City, Nova Jersey, Enoch L. Johnson, e produzida por, dentre outros, Martin Scorsese, que também dirigiu o piloto. No total, teve cinco temporadas que, juntas, chegaram a 56 episódios, exibidos entre 2010 e 2014. A produção não obteve o nível de reconhecimento mundial que merecia, sobretudo em função da competição, mas é uma das mais criticamente aclamadas produções da história da HBO, tendo recebido 57 nomeações ao Emmy e vencido 20, além de ter recebido o Golden Globe em 2011 e dois SAG Awards, e é sem sombra de dúvidas uma das melhores produções para televisão já feitas.
A série acompanha o protagonista Enoch “Nucky” Thompson – uma versão ligeiramente ficcionalizada de sua contraparte real, Enoch “Nucky” Johnson – em sua ascensão de político comum a um grande líder do crime organizado durante a Proibição em Atlantic City, Nova Jersey, na década de 1920. Os personagens que se envolvem na história de Nucky incluem toda sorte de figuras reais famosíssimas do crime e da política – Al Capone, Arnold Rothstein, Lucky Luciano, Meyer Lansky, Benjamin Siegel, Chalky White – e memoráveis personagens ficcionais que incluem mafiosos, políticos, oficiais do governo, amantes e pessoas comuns.
Premissa
Boardwalk Empire segue a ascensão de Nucky Thompson, um político popular e corrupto que se torna um traficante e rei do crime organizado de Atlantic City, Nova Jersey, durante a década de 1920 – período da Proibição nos Estados Unidos, quando o álcool de todo tipo era ilegal. Nucky é estranhamente carismático e muito generoso, e com frequência, toma atitudes genuinamente boas a respeito de outros: ele faz caridade, ajuda mulheres e imigrantes irlandeses, e tem um carinho especial por crianças – já que é frustrado em seu desejo de ser pai. Ele também é manipulador, ambicioso, corrupto e disposto a tudo para estar no topo do violento mundo do tráfico de álcool. A série acompanha as ações de Nucky enquanto ele faz alianças, inimizades e negócios com todos os maiores gangsteres, criminosos e políticos do período, em uma história fantástica de corrupção política, crime organizado e dramas pessoais.
Com a ajuda de seu irmão, o xerife extremamente leal com uma imensa família – e problemas com bebida, inseguranças, instabilidades e um imenso conflito entre ressentimento e admiração por seu irmão mais velho – e de uma série de outros gangsteres, a maior parte deles baseados em pessoas reais, Nucky cresce no negócio. Ele entra em conflito com Jimmy Darmody, seu protegido que foi lutar na Primeira Guerra Mundial e retornou traumatizado. Jimmy é ambicioso e deseja criar um caminho para si mesmo – eventualmente buscando criar sua própria organização criminosa para ir contra Nucky.
Mas nem só de Nucky vive Boardwalk Empire. A série tem uma coleção de personagens – tanto protagonistas quanto coadjuvantes – tridimensionais, cheios de camadas, realmente interessantes e que não apenas carregam, como guiam a história de maneira magistral.
O extremamente religioso e justiceiro policial Nelson Van Alden, que acredita na correção suprema da lei, está determinado a destruir todos os que estão lucrando com o mundo glamouroso e muito ilegal do tráfico – e traz consigo muitos momentos de comédia e humor negro e um arco de personagem surpreendente; a pobre imigrante irlandesa Margaret Schroeder é ambiciosa, forte e tem desejos reprimidos – criminosos e sexuais – que contrastam com sua moral católica; e a complicada, absolutamente instável e muitas vezes positivamente vilanesca Gillian Darmody, uma prostituta transformada em dona de bordel, tem sérios problemas mentais – vindos de um passado terrivelmente trágico –, níveis descontrolados de ambição e ideias profundamente românticas sobre sua vida que chegam a beirar a alucinação, e é cativante na mesma medida em que é insuportável.
Cabe ainda uma menção separada – e muito especial – para Richard Harrow, o personagem favorito das audiências, da crítica, de vários dos criadores, e dessa autora. Harrow é um veterano desfigurado da Primeira Guerra Mundial com uma habilidade quase sobre-humana com armas, que se torna parte do mundo do crime organizado por lealdade a Jimmy Darmody, que lhe deu uma chance quando ele estava perdido, mas seu verdadeiro desejo é o de viver uma vida normal com uma esposa e filhos em uma casa de família e receber o amor e a aceitação que lhe faltam desde a destruição de seu rosto.
Harrow é extremamente leal e corajoso, gentil, perceptivo e carinhoso com aqueles que ama, e, ao mesmo tempo, tem uma capacidade imensa para violência brutal, com o sangue-frio e a precisão necessárias ao assassino profissional que ele é. Um personagem que comanda simpatia, pena e admiração em igual medida, com imensa capacidade para o amor e uma busca eterna pela felicidade, mas assombrado por seu histórico de matança e violência, ele é trágico, sofrido e, acima de tudo, incrivelmente humano.
A série explora temas como a ambição e o quanto alguém está disposto a fazer para ascender ao poder e as consequências da ganância, do ego e do comprometimento de valores, mas também trata de temas como TEPT entre veteranos, pedofilia e prostituição, questões raciais e racismo nos Estados Unidos no entre-guerras, desemprego e descriminação contra veteranos mutilados, questões sobre a imigração irlandesa, violência doméstica e mais.
O que torna Boardwalk Empire um clássico?
Boardwalk é maior do que um típico show “farofa” de crime e gangues por sua brilhante justaposição de histórias de ação, crime e violência com histórias de nível pessoal. A série explora as hierarquias, complexidades e relações das gangues e o lado glamouroso e divertido das histórias sobre criminalidade, mas também humaniza todos esses gangsteres, mostrando facetas de suas vidas pessoais, românticas e familiares que os tornam genuinamente interessantes de assistir – como, por exemplo, as passagens que exploram a surdez do filho de Al Capone, a profunda complexidade emocional e busca por amor, família e normalidade de Richard Harrow, ou o profundo trauma e tragédia da vida de Jimmy Darmody, que o levou ao crime em primeiro lugar – e explorando suas inseguranças, falhas, valores e relacionamentos pessoais verdadeiros.
A série está recheada de cenas de ação tensas, viradas dramáticas e imprevisíveis e surpresas de cair o queixo; nem por isso, se torna exagerada. É um show que combina muito bem duas qualidades: se manter imprevisível, mas garantindo que suas histórias (na maioria das vezes) continuem fazendo sentido lógico e sejam coesas, evitando viradas que sirvam apenas para chocar ou surpreender de maneira barata e sem sentido. As resoluções dos conflitos com frequência deixam o espectador chocado, em profunda reflexão, positivamente surpreendido ou – e aqui vem à mente uma história em particular – emocionalmente arrasado.
O show dificilmente apressa qualquer história, e leva todo o tempo necessário – por vezes múltiplas temporadas – para adicionar e desenvolver detalhes que adicionam camadas de complexidade para as narrativas e relações entre os personagens, e que eventualmente tornam o pay-off ainda mais satisfatório, amarrando histórias perfeitamente. É uma narrativa que se desenvolve de maneira lenta no que importa – sobretudo em linhas mais movidas por personagens, como é o caso de boa parte da quarta temporada (que, na opinião dessa autora, é a segunda melhor, perdendo apenas para a terceira), mas que dificilmente se torna entediante enquanto o faz, e que eventualmente entrega resultados que com certeza valem a pena para o espectador.
Em todas as temporadas, com a exceção, talvez, da quinta – que é um desastre à parte em seu resultado final, como é comum com shows da HBO –, o último capítulo amarra todos os outros tão bem que é impossível não chegar à conclusão de que tudo aconteceu exatamente como deveria.
O diálogo, como é de praxe nas melhores produções da HBO, é excelentemente escrito. Ele não apenas é inteligente e cativa o espectador, como também serve para fazer magistral exposição dos personagens, de suas ações, psiques, motivações, histórias e personalidades, e para manter a história andando de maneira natural. Isso, é claro, funciona particularmente bem na medida em que os personagens em questão são carismáticos, complexos, instáveis, caóticos, ameaçadores, ambiciosos, erráticos e cheios de nuances, sejam eles protagonistas, antagonistas, ou qualquer coisa nesse meio.
É claro, há um ou outro antagonista que não tem quase nenhuma qualidade redentora – vem à mente Gyp Rosetti -, mas estes são interpretados por atores tão brilhantes que são tão bons em serem maus que é preciso, no mínimo, adorar odiá-los. O segredo de Boardwalk é dosá-los bem e utilizá-los estrategicamente para criar entretenimento sem perder a seriedade e nuance características da produção. Esses vilões trazem para a experiência o elemento irresistível de esperar com imensa vontade o momento em que eles encontrarão as consequências de suas ações.
Produção
A produção da série é impecável – possivelmente uma das mais impecáveis da história da televisão –, e é a ela que se deve creditar parte significativa dos intermináveis elogios recebidos pela série. Extremamente historicamente correta e detalhada em todos os aspectos visuais, incluindo cenários e figurino, a série apresenta tanta autenticidade estética em relação ao período que pode ser dito que ela é virtualmente perfeita em termos de adequação histórica.
As filmagens se deram quase inteiramente dentro de um set de filmagens em Nova York. Nele, foi construída uma perfeita Atlantic City da década de 20, baseada em fotografias, cartões postais e planos arquitetônicos reais visando a maior correção possível, com o calçado de quase 100 metros – custando 5 milhões de dólares – incluso. Muitos efeitos visuais foram necessários, e a companhia Brainstorm Digital declarou ter sido seu trabalho mais complexo até então, pois a qualidade deveria ser equivalente a de um filme. A produção foi extremamente ambiciosa, com muitos especulando que seria grande demais para televisão; o primeiro episódio custou 18 milhões de dólares, embora tenha recebido um orçamento de até 50 milhões.
Os figurinos, meticulosos, extremamente detalhados e, mais uma vez, historicamente irrepreensíveis, foram criados por John Dunn e feitos por Martin Greenfiel, baseados em livros de costura da década de 20 e roupas reais encontradas em museus americanos. Algumas peças também foram alugadas. As roupas são extremamente específicas para a era, muito realistas, e se relacionam com perfeição com os arcos de seus personagens.
A equipe de produção, reconhecida com múltiplas nomeações e prêmios, incluiu nomes de peso para acompanhar Martin Scorsese e Terry Winters, incluindo Tim Van Patten – diretor envolvido em Os Sopranos e Game of Thrones, a frente de boa parte dos melhores episódios da série – Mark Wahlberg, Stephen Levinson, Lawrence Konner, Howard Korder e Margaret Nargle.
Elenco
Boardwalk Empire contou com um dos melhores elencos ensemble da história da televisão, com grandes nomes misturados à character actors reconhecidos aos montes. O papel principal, Enoch “Nucky” Thompson, foi vivido pelo fantástico Steve Buscemi, enquanto sua amante e depois esposa, Margaret Schroeder, é interpretada pela inconfundível Kelly Macdonald. A atuação de Buscemi foi particularmente elogiada, e universalmente reconhecida pela crítica especializada como um dos pontos mais altos da série.
O sempre maravilhoso Michael Sthulbarg interpreta um Arnold Rothstein tão memorável quanto assustadoramente parecido com sua contraparte real, e domina a tela em todas as cenas em que aparece.
Vincent Piazza atua como o gângster da vida real Lucky Luciano, em uma performance excelente e cativante, apesar de por vezes Luciano estar agindo como um antagonista na série.
O fantástico Stephen Graham traz para as telas um Al Capone tão perfeitamente interpretado que, para muitos críticos – e também, sem sombra de dúvidas, para essa autora, diga-se de passagem -, sua performance tornou-se a melhor e mais definitiva do famoso gângster, ultrapassando inclusive a do gigante Robert De Niro.
O controverso Michael Pitt interpreta um traumatizado veterano da Primeira Guerra Mundial que quer se tornar um gângster, Jimmy Darmody, e se torna rapidamente um dos mais memoráveis personagens da produção.
Paz de La Huerta – que foi filmada bêbada saindo aos tropeços dos Golden Globes de 2011 representando Boardwalk Empire, vídeo esse que viralizaria e se tornaria parte do videoclipe de Video Games, primeiro grande sucesso que fez a carreira de Lana Del Rey deslanchar – interpreta a muito questionável amante de Thompson, Lucy Dazzinger.
O saudoso Michael Kenneth Williams traz uma interpretação memorável do poderoso chefe do crime organizado afro-americano real, Chalky White, se tornando um dos preferidos da audiência com seu carisma.]
Michael Shannon, indicado ao Oscar, entrega uma performance fantástica em toda a sua estranheza, e encarna o hilariamente exagerado, mas imensamente complexo Nelson Van Alden, um agente de polícia profundamente religioso ao melhor estilo Javert, com perfeição.
Gretchen Mol vive Gillian Darmody, uma prostituta ambiciosa com um passado trágico e sérios problemas mentais, além de um amor imenso – e incestuoso – pelo filho. Simultaneamente antagonista e vítima, sua performance é trágica, comovente e enfurecedora de uma vez só, e carrega admiravelmente bem a personagem, que termina por ser uma das mais importantes da série.
Charlie Cox, hoje em dia parte, dentre outros projetos de peso, da franquia dos Vingadores da Marvel, interpreta Owen Slater, um membro voluntário do IRA que se envolve – um pouco demais – na vida pessoal e familiar de Nucky ao servir como seu guarda-costas.
O sempre explosivo Bobby Cannavale atua como Gyp Rosetti, um dos mais memoráveis vilões de Boardwalk. Sua performance foi imensamente elogiada e recebeu um Emmy.
Jack Huston entrega a performance de sua vida como Richard Harrow, considerado por muitos não apenas o maior personagem da carreira de Huston – que tem Judá Ben-Hur em seu currículo – mas também um dos melhores personagens da história da televisão. O arco original de Harrow – um sniper da Primeira Guerra Mundial que teve metade de seu rosto destruído – deveria ser concluído em apenas três episódios, mas o trágico e cativante personagem tornou-se tão amado pelos criadores da série e pelos fãs que acabou ficando por quatro temporadas, e recebeu um mini-documentário especial para sua despedida.
Ron Livingston, que esteve envolvido em outras grandes produções, incluindo a também aclamadíssima produção da HBO “Band of Brothers”, tem um arco de uma temporada ligado ao papel de Gretchen Mol como Roy Philips.
O sempre incrível – e indicado ao Oscar de melhor ator – Jeffrey Wright interpreta com maestria um dos mais traiçoeiros e enfurecedores vilões da série, o filantropo, “médico”, ativista seguidor de Marcus Garvey, e chefão do crime organizado Dr. Valentin Narcisse.
O elenco inclui dezenas de outros personagens principais, regulares e coadjuvantes, em sua maioria interpretados com perfeição por atores extremamente capazes.
Música:
Com a exceção da música de abertura – “Straight Up and Down”, de The Brian Jonestown Massacre -, escolhida propositalmente para causar uma sensação de surpresa, toda a trilha sonora de Boardwalk Empire, também elogiadíssima, é composta por gravações novas ou originais de músicas da época, ou populares na época, contribuindo imensamente para a sensação de realismo histórico da série.
Boardwalk Empire foi responsável por resgatar muitas músicas da década de 20 ou mais antigas na consciência pública – algo facilmente observado quando, ao buscar por gravações de, por exemplo, “Is There Still Room For Me (‘Neath the Old Apple Tree?)” no YouTube, todos os comentários dos vídeos, sem exceção, fazem referência a Richard Harrow. Já as regravações feitas especificamente para a série incluem uma pletora de artistas fabulosos, incluindo Liza Minnelli, Regina Spektor, Leon Redbone, Loudon Wainwright III, Martha Wainwright, Catherine Russell, Nellie McKay, Kathy Brier, e Vince Giordano and the Nighthawks Orchestra, e recebeu um Grammy.
Boardwalk Empire, um triunfo da boa televisão
Dez anos após seu último episódio, Boardwalk Empire permanece tão boa quanto era uma década atrás. É inegável que sua última temporada – e, especificamente, seus últimos minutos – foram um desastre, mas isso já aconteceu com outras séries brilhantes – Game of Thrones, olá? – e nem por isso elas deixaram de valer a pena.
A série é impecável em quase todos os detalhes, tem personagens incrivelmente bem construídos aos quais é impossível não se apegar, uma escrita que por quatro temporadas se segura com solidez e, em resumo, é excelente. Há muitos detalhes históricos que os fãs de história vão apreciar, mas que não são conhecimento necessário para os menos interessados no passado entenderem o show.
Boardwalk Empire é um triunfo, tanto como um excelente drama sobre crime organizado, quanto como uma coleção de brilhantes estudos de personagem interpretados por um elenco nada menos que fenomenal de atores que dominaram sua arte. E por isso, merece ser vista.