Na insustentável beleza de “Ser José Leonilson”, a representação é uma construção inacabada

No teatro, as máscaras são elementos cênicos onde o rosto humano representa o riso e a tristeza não como oposição, mas uma construção. Em “Ser José Leonilson”, em cartaz no Mezanino da Fiesp, em São Paulo, isso é dito logo na abertura, quando o ator Laerte Késsimos, depois de receber a plateia, explica que a ideia de representar a vida do artista cearense culmina em uma construção semelhante a de um prédio. 

O paralelo é importante para a peça. As memórias de Leonilson, um artista importante do Brasil, cuja obra se espalha por desenho, pintura, objeto, bordado, tecido e instalação, nordestino radicado em São Paulo, gay e morto aos 36 anos vitimado por HIV ainda nos anos 90, servem como argamassa. Em vida, Léo gravou longas fitas, ora confessando seus medos, ora destituindo-os. Só que Leonilson não fazia um tipo brando de “autoficção”, e sim um um mapa para (re)conhecer sua obra através do corpo e transformando a si mesmo em parte da criação. 

É algo difícil de fazer. Caso o processo de Leonilson fosse fechado demais, poderia se tornar intransponível para Laerte. Daí esse efeito de estranhamento, distanciamento e desilusão onde a platéia é lembrada de estar diante de um espetáculo de teatro ser o alicerce dessa encenação dirigida por Aura Cunha, com Idealização e atuação do próprio Laerte Késsimos e dramaturgia de Leonardo Moreira. Completando 20 anos de carreira, a experiência do ator acha na história de Leonilson uma morada tão poderosa quanto o palco onde ela é/será contada. O projeto ganhou corpo de três formas: uma instalação em um ateliê-vitrine durante 30 dias, a criação da obra “Como se desenha um coração?” e o espetáculo em cartaz. 

Fotos por Lenise Pinheiro

Através do paralelo entre sua vida e a do pintor nordestino, Laerte usa uma máscara dupla para criar um espelho dentro de um reflexo dentro de uma imagem opaca que, de algum modo, se inscreve naquilo que Artaud coloca como uma necessidade de “acreditar num sentido de vida renovado para o teatro onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que não existe e o faz nascer”. 

Ser um homem no sentido mais paroquial da coisa, inclusive, é questionado durante a peça por ser algo relativo à vida de Leonilson e Laerte. Assim, toda essa matéria bruta exposta na “construção” se bifurca. O corpo do ator não está enjaulado pelo texto, embora haja muita beleza nas palavras, e a encenação se monta, desmonta e remonta de modo a posicionar Leonilson tanto como um personagem, quanto um artista que representa o próprio Laerte em cena, por sua vez, um personagem de si.

Se a confluência pode parecer confusa, em vez de fazer uma radiografia para descobrir qual dado pertence a qual vida, o cuidado da direção de Aura Cunha é para que a poesia confunda, sim, só que sem largar o público fora do palco. Quanto mais essas linhas são desfiadas, mais perto nós estamos de ouvir os “pensamentos do coração”. E Laerte, em troca, faz da representação de Leonilson “algo tão localizado e tão preciso quanto à circulação do sangue nas artérias” como Alain Virmaux escreveu no capítulo “Cartas sobre a Crueldade” em “O Teatro e seu duplo”.  

Músicas longas, arranjos e ritmos: Liniker explora em “Caju” as raízes da cultura popular

No espetáculo, o corpo é um elemento de muitos símbolos. Em um dos momentos mais bonitos da peça – e eles são muitos – o ator conta sobre uma viagem ao Uruguai quando sua cachorrinha, Goiaba, olha para a estátua de um lobo e entra em pânico. Na pracinha onde estavam, o animal demorou a entender que se tratava de uma representação do lobo. Quando Leonilson se dá conta da iminência da morte, suas gravações misturando fantasia e realidade servem para ele possivelmente entender que os medos, o pânico, a carência e tantos outros elementos podem ser apenas estátuas. 

Fotos por Lenise Pinheiro

Laerte também fez gravações como se conversasse com Leonilson; criou trabalhos manuais inspirados por ele; copiou parte das obras de Zé em sua acareação íntima do processo e da vida. Esse mergulho é visto em uma interpretação linda, que fala as piores coisas sorrindo, as mais bonitas chorando… Junto da trilha sonora de Marcelo Pellegrini, duetando com o desenho de luz de Aline Santini, “Ser José Leonilson” expande tempo, espaço e personagem, os andaimes do ofício teatral. Há um cuidado especial na divisão do texto em partes, bordando a atenção do público nos cômodos do labirinto. São pequenas implosões os trechos envolvendo o personagem chamado Ethan, o retorno de Laerte ao lugar onde morava e a citação de “Life on Mars?”, do David Bowie.

Em outro momento, ao lembrar do golpe de Dilma em 2016, a poética versa sobre a política. Mas neste momento, como na abertura, nós somos lembrados que o mundo é o primeiro corpo em decomposição, o lugar onde vivemos pode ser tão violento quanto os pensamentos mais íntimos e para algumas pessoas – como os gays ou portadores de HIV – a finitude será vista sob um ângulo muito cruel por parte das pessoas defensores mascarados da família, moral e bons costumes.

Nesse mundo em falência, perto de acabar, a arte tem de ser bordada na política de forma inescapável porque ser ator e estar no palco é um protesto. A razão de ser desta e de outras encenações é/será encontrar personagens que tornem a vida possível. A arte e a representação podem sarar o indivíduo, não podem?

Depois da última cena de “Ser José Leonilson”, o fim se transforma no começo. E com uma nova máscara, José Leonilson, ou Laerte Késsimos (ou Kessy Moss) regurgitam esse espetáculo ainda construção, que não está “no mar ou no espaço, mas por detrás de óculos e um par de jeans”. 

Ficha Técnica do espetáculo:

Idealização e atuação: Laerte Késsimos
Direção: Aura Cunha
Dramaturgia e pesquisa: Leonardo Moreira
Cenografia: Marisa Bentivegna
Desenho de Luz: Aline Santini
Trilha Sonora Original: Marcelo Pellegrini
Pesquisa, figurino e direção audiovisual: Laerte Késsimos
Direção de Produção: Gustavo Sanna
Produção Executiva: Yumi Ogino
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
Co-produção executiva: PrumoPro
Realização: Prêmio Zé Renato, PrumoPro e Secretaria Municipal de Cultura
“Este projeto foi contemplado pela 18a Edição do Prêmio Zé Renato – Secretaria Municipal de Cultura”.

Se quiser conhecer ou rever a obra desse artista, no MASP está em cartaz a exposição “Leonilson: agora e as oportunidades”.

Related posts

“COMUM”: nos 60 anos do golpe, peça retrata história de vala com mais de mil ossadas de presos políticos

“Não corre, menino!”: peça retrata violência policial sobre corpos pretos e periféricos

“As Belas Coisas da Vida”: espetáculo infantojuvenil celebra a simplicidade dos bons momentos