Na peça “Aparição”, a memória surge como uma desmontagem da palavra 

Faz parte da nossa cultura popular abrir a geladeira para pensar. E durante “Aparição”, em cartaz no Sesc Avenida Paulista, em São Paulo, a partir de hoje, nós vemos Larissa Siqueira esgarçando a porta do seu congelador azul algumas vezes. Na primeira e mais imponente, a personagem discute com alguma criança. Ou ela mesma assume essa forma. Isso porque o cenário familiar, onde elementos como uma mesa farta, um vaso de espada-de-são-jorge, samambaias, livros sobre teatro e refletores estão inseridos em um processo de desmontagem cênica. “Aparição” é o avesso de “Reencarnação”, que passou pelo mesmo palco uma semana antes dessa estreia. Não significa, contudo, um oposto, um esconderijo ou ainda a desmontagem propriamente dita da peça anterior. 

foto: Rodrigo Menezes

No jogo de Larissa Siqueira, que pode ser chamada de Lara Negalara ou Lara Cunha, os nomes dos personagens ou dos lugares, significam pouco. Ela não lembra deles. Mas em vez de tapar essa falta, a personagem confunde onde abriu os buracos. Ao desfiar um pensamento, Negalara puxa outro. E outro. E outro, e vai tecendo a história a partir da interrupção de sua memória. Larissa não fala realmente o que está pensando. A lembrança, como ela define, não precisa ser um substantivo, e sim um verbo. No pensamento, era o verbo. E de preferência, de uma classe gramatical só permitida pela linguagem como ter sido e estar sendo.

Essa condição é tão costumeira na vida, tão minimizada, que empurramos o significado para um rótulo coloquial que não dá conta do sentimento gerado pela lembrança. Parece engraçado dizer “ter sido”ou “estar sendo”. Só que Larissa Siqueira usa o espaço caseiro para botar o público na sala. A conversa parece mesmo coisa de amigos. Mas a mulher faz questão de alertar que não se deve partilhar pensamentos com qualquer um. Só abra a geladeira diante de desconhecidos se for pra pegar uma cerveja… 

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O calor do cenário, reforçado por uma iluminação inteligente, sensível aos momentos e capaz de expandir o corpo da atriz usando só luz e cor, iluminam os buracos cavados por ela na montagem do espetáculo anterior. Importado de “Reencarnação”, portanto, temos a lembrança de uma voz.

Na verdade, a voz é a personagem principal de “Vaga Carne”, forte espetáculo encenado em 2016 onde Grace Passô interpretava uma “voz”. O choque ao ver a peça deve ter bagunçado o pensamento de Larissa Siqueira, que carregou o espectro para 2024 como parte do seu trabalho. Os refletores dissolvem a metalinguagem de maneira sutil. Larissa sabe que a conversa não deve ser cabeçuda. Nem precisa. Se Teatro regurgita teatro, se memória puxa memória, se abrir a geladeira ajuda a esfriar os pensamentos, como a mãe da atriz fazia ao pôr a roupa no congelador antes de enfrentar o calor do Rio de Janeiro, tudo que está em cena não precisa ser explicado, ou trançado ou dito porque o seu jogo de desmontagem é ardiloso, e não vai dizer o que deve ser pensado. Trata-se de uma desmontagem da palavra. Esse trabalho fica para quem vê. 

A atriz é parceria de Zaba Azevedo na direção e, além de fazer o solo, escreveu o texto. Então havia uma facilidade em jogar consigo mesma, tirar a ficção de campo e impor um tipo fechado de coisa. Em vez disso, Larissa e Zaba Azevedo trazem muitos animais para dentro da dramaturgia. Com poucas figuras humanas, cabem aos carneiros, cobras, galos e jacarés formatarem as lembranças de cada espectador e abrirem os poros do espetáculo. 

Em algum momento, eu me lembrei das teorias sobre os “lugares da memória” de Marc Augé e Paul Ricoeur, e do que esses autores defendem sobre a obrigatoriedade de criar espaços físicos para arquivar o senso coletivo, ao mesmo tempo em que precisamos esquecer das coisas para continuar lembrando delas. Na cabeça não cabe tudo. Cenas da infância, dos “ex-maridos”, do gosto de uma bebida gelada precisam adquirir outros formatos para continuar existindo. O fato do perfil da peça no Instagram ser “Lugar de aparição” é uma ironia interessante. Nas redes sociais, fora desse ambiente familiar, nossas lembranças estão, aos poucos, se transformando em fantasmas digitais, não é? Ainda bem que “amanhã outros passarinhos vão cantar” e o teatro – esse lugar de memória, esse museu de futuros – estará novamente aberto. Sempre. 

Com pouco mais de 50 minutos, “Aparição” não precisa ser chamado de espetáculo. É um verbo. Existe na ação. No instante em que acontece, já pode ter sido. Ou ainda estar sendo.

Ficha técnica

Aparição
Direção: Larissa Siqueira e Zaba Azevedo | Texto e atuação: Larissa Siqueira |Cenografia: Zaba Azevedo | Iluminação: Fernanda Mantovani | Figurino: Tiago Ribeiro | Trilha sonora: Martha Supernova | Preparação vocal: Soraya Ravenle | Videos: Lara Cunha
Fotos: Rodrigo Menezes | Designer: André Senna | Comunicação: Natália Brambila
Cenotécnico e adereço: Atelier Cohen | Direção de Produção: Aliny Ulbricht |Coordenação de Produção: Raissa Imani | Produção Executiva: Nuala Brandão
Produção Local: Cissa Moreira | Produção: Kawaida Cultural

Dias: 22, 23, 24 e 25 de agosto de 2024. Quinta a sábado, às 20h. Domingo, às 18h.
Sessões com acessibilidade: 24 e 25/8 (libras).

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