Em uma montagem genial de Inês Bushatsky, Rei Lear é encenada com elenco drag queen

Na encenação da diretora Inês Bushatsky, “Rei Lear”, em cartaz no Sesc Consolação, em São Paulo, tem o elenco inteiramente formado por drag queens. Alexia Twistter, DaCota Monteiro, Mercedez Vulcão, Ginger Moon, Antonia Pethit, Lilith Prexeva, Maldita Hammer, Thelores e Xaniqua Laquisha contam a história do rei que abdica do trono, dividindo seu reinado entre as três filhas. Para isso, contudo, elas deveriam convencê-lo do amor e devoção a ele através das palavras. 

A arte drag nasceu no teatro, que é uma expressão artística da palavra. Como as mulheres não podiam atuar na Roma e Grécia antigas, cabiam aos homens interpretar papéis femininos. Obviamente que o significado de ser drag queen ganhou traços políticos, sociais, e desembocou dos anos 60 completamente arraigado pelo movimento LGBT, sendo estas performances mais concentradas em casas de show, boates e paradas gay do que no lugar onde elas nasceram. O próprio Shakespeare foi um dos incentivadores das drags no teatro elisabetano em “Noite de Reis”.

Mas nesta montagem de “Rei Lear” é traçada uma linha importante entre o clássico e o contemporâneo justamente para aflorar a teatralidade do texto de Shakespeare. Não estamos vendo uma paródia. Em cena, Cordélia, Reagan, Edmond, Goneril e os demais personagens têm suas características mantidas. As intervenções da ótima dramaturgia de João Mostazo lembram que a plateia está vendo uma representação, uma peça de teatro. Brincadeiras com o cachê das artistas e a limitação da verba, por exemplo, mantêm a magia e o ritmo. 

O genial da montagem de Inês Bushatsky é usar a arte drag para destacar que o mais importante está na própria representação: hoje, um personagem de teatro pode ser feito por qualquer artista. O “chega pra lá” nos possíveis críticos, contudo, não exila a peça de conversar com o lugar e a época onde está sendo apresentada. Sobretudo, por “Rei Lear” falar tanto sobre personagens rejeitados, filhos bastardos, loucos e cegos. Mas ao colocar o mapa do Brasil no centro do palco ilustrando o reino a ser despedaçado, Inês Bushatsky faz outra inflexão maravilhosa, pois o Brasil nunca esteve tão dividido. A elite intelectual e progressista que filtra os artistas e os lugares onde eles podem ser bem-vindos, de certa forma, ajudou nessa separação. Caso contrário, um elenco de drag queens encenando um texto clássico não seria novidade, não é?

Na visão de Jorge Farjalla, “Álbum de Família”, de Nelson Rodrigues, é uma peça assombrosa

Para dar conta desse jogo duplicado tão metalinguístico, as artistas se sobressaem. E mesmo assim é preciso destacar o trabalho de Alexia Twistter, como Rei Lear, e DaCota Monteiro, em interpretações vigorosas, que transitam entre o hilário e o drama. A maquiagem e o figurino são lindos. E a cenografia e a trilha do espetáculo também criam momentos de puro brilho. Seja na abertura, com “Hung up”, da Madonna, “War Pigs”, do Black Sabbath, já no meio do espetáculo, e “It’s Raining Men”, perfeitamente integrada a um das cenas mais importantes do texto de Shakespeare, quando Lear toma uma tremenda chuva e fica louco. 

Quem viu “Ran”, a adaptação japonesa do texto, não deve ter esquecido da batalha sangrenta que encerrou a disputa do rei com seus filhos. Se na versão queer havia espaço para um “bate-cabelo” tão impactante quanto a sequência criada por Akira Kurosawa, a escolha é por um final de palavra, de texto, de discurso, onde a melancolia, a solidão, o medo e a rejeição, tão caros a obra de Shakespeare, encontram nas artistas em cena um simbolismo maior. Por hora, o teatro é um lugar onde elas falam e são ouvidas. Podem usar a palavra pra convencer reis, loucos e cegos. O teatro é o espaço seguro para que elas possam contar a História. 

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