Os contos de Cássio Rodrigues fazem um passeio pelas marginalidades e suas epifanias possíveis em nossa sociedade
“A pátria deverá tirar à sua própria boca para não faltar à minha, e se eu tiver de comer cardos, coma-os a pátria comigo, ou então uns são filhos da pátria e os outros são filhos da puta.”
José Saramago sobre a fome,
Em Levantado do Chão
Nos autos medievais que conhecemos um pouco através dos escritos tardios de Gil Vicente, é muito comum encontrarmos uma série de figuras arquetípicas que representam ideias, sentimentos ou até elementos como, por exemplo, a morte ou a vida. Em uma delas, como no caso de O Auto da Barca do Inferno, temos o Fidalgo, o Parvo, o Sapateiro, o Frade, Brízida Vaz, uma alcoviteira tendo de encarar a morte e um anjo na tentativa de entrar no céu.
A ideia é que estas figuras, por aquilo que fazem de mal, precisam passar por um certo sofrimento até conseguir uma purificação de tudo de ruim que fizeram ao mundo. Assim, puros, poderiam embarcar rumo ao céu. Eu faço uma aproximação dessa ideia, ainda que com certa diferença, para falar do livro Epifanias Marginais, do escritor Cássio Rodrigues – para quem, de certa forma, uma boa dose de pureza e sofrimento aproxima as figuras de uma transcendência.
Epifanias Marginais é a reunião de 19 contos do escritor Cássio Rodrigues, publicado pela Editora Mondru, em 2024, com edição de Jeferson Barbosa. Destaco aqui a edição porque a Mondru é, dentre as editoras independentes, a que tem feito um dos melhores trabalhos em termos editoriais.
São projetos gráficos lindos, com ilustrações internas estonteantes e diagramação, ao mesmo tempo, arrojada e sem invencionice. E o mesmo podemos falar do Epifanias Marginais, que traz como referência na capa a obra The Thankful Poor (O Pobre Agradecido, em tradução literal, de 1894), de Henry Ossawa Tanner. E guarde essa informação, pois ela é bastante relevante para nosso texto.
Sobre o autor, podemos dizer que não poderia ser outro a escrever essas epifanias marginais, afinal só na sua biografia já fazemos uma espécie de desfile, tal qual vimos anteriormente nas figuras de barca do Gil Vicente: além de escritor, ele é doutor em história, serralheiro, soldador, eletricista, professor de filosofia e, adivinha, fã do mestre Belchior.
Nos contos do livro, Cássio faz um verdadeiro de desfile dessas figuras que são vistas às margens da sociedade, mostrando como, em uma sociedade que é toda composta da formação de centros – o dinheiro, a família, a religião, o amor -, há uma série de figuras dissidentes desse universo que circulam por suas margens. O mais interessante é que Cássio não tem uma vinculação moral com essas figuras, que podem ser ora terríveis, ora magníficas; ora resistentes, ora violentas, como se a própria marginalidade fosse um molde de caracteres que escapariam a este mundo iluminado das normas.
Entretanto, é bastante curioso que, apesar de escapar da vinculação moral, Cássio nos dá a ver uma série de escolhas éticas no retrato de seus contos. É possível ver, por exemplo, que ele traça uma linha entre as figuras que são marginais e aquelas que são marginalizadas.
As marginalizadas são aquelas cujas vidas foram jogadas para as margens, como as pessoas em situação de rua, as prostitutas, os usuários de drogas; as marginais são aquelas cuja vocação para a margem faz-se por escolha, seja contingente, como um casal que foge para casar e viver longe da família, ou quase inerente, como um jovem que frequenta um bordel e vive por uma noite a experiência o que seria uma noite de gozo e amor.
Essa história, por sinal, é uma das melhores do livro. Ela se chama Jukebox e conta a história de um jovem que chega nesse bordel, que ali ganha o nome de “bar de sauna”, e repara em uma mulher diferente. Combinam o preço e vão para o quarto, onde vivem um momento raro de encontro entre corpos que combinam. Ele passa por um profundo momento de prazer, assim como ela, que chega ao orgasmo mais de uma vez.
Após a relação, os dois conversam brevemente, descem para o bar propriamente dito e ficam ouvindo a jukebox: “We are the world” primeiro e, depois, “I Will Always Love You”. A música que, poderia sugerir o surgimento de um romance entre eles, no conto nos chega como um triste toque de ironia.
Enquanto isso, ele vai até sua moto e a liga no momento em que a canção entra na parte final, e ele se vai no momento derradeiro em que Whitney se esgoela. Quase tudo, de um lado, tornando aquele momento singelo, único, poético e porque não dizer “espiritual”, mas também um tanto triste e trágico dessas figuras que, apesar dos encontros, não são capazes de se adequar. No momento derradeiro, Cássio escreve:
“Então ele percebe, enquanto caminha para a moto, que o Cosmos por vezes faz essas coisas, mesmo sem nenhum aviso prévio.”
A moto, inclusive, vai reaparecer em outros dois contos, “A Lambreta” e “A moto”, talvez como um símbolo de liberdade que foi durante os movimentos de contracultura dos anos 60, como no caso do filme Easy Rider (Sem Destino – 1969) e na clássica canção de Sá, Rodrix e Guarabyra, Jesus Numa Moto.
Neste “A Lambreta”, inclusive, podemos destacar uma das grandes características da escrita de Cássio Rodrigues: a capacidade de, em poucas páginas, sintetizar a vida inteira de suas personagens sem que seus contos fiquem generalistas ou percam a capacidade de emocionar No conto, conhecemos dois jovens que se apaixonam logo na adolescência e decidem se casar, mesmo após o pai perceber os indícios de um homem ciumento e abusivo.
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Após alguns anos de casamento, porém, o que o pai profetiza acontece: o marido se torna alcoólatra e começa a agredir a esposa que, logo em seguida, se separa, voltando para a casa dos pais. Vivendo um calvário em que enlouquece após a perda de um filho, mais o uso abusivo de drogas, a moça chega ao fundo do poço do que nas histórias dos livros costuma ser uma narrativa de superação. Nesse caso, não: Cássio nos mostra este trágico que é a vida quando nos foge do controle:
Ela segue sem entender como ainda está respirando depois de tudo que chorou, sofreu e de tanto se expor. Eu diria a essa mulher que o fato dela continuar viva é uma demonstração do imenso potencial do universo de ser sádico.
Para finalizar, podemos completar o círculo dos temas e histórias apresentados por Cássio trazendo o foco para outra palavra: as epifanias. Para quem não conhece, a epifania é uma espécie de percepção repentina de que tudo no mundo faz sentido. Geralmente, ela vem seguida do clarear de todas as ideias sobre a existência em um específico momento, como se a vida se tornasse, ali, revelação.
É interessante que o livro não fala de uma epifania única, como é o caso de Macabéa, em A Hora da Estrela – um momento de revelação profunda – mas aqui as epifanias desses personagens marginais são plurais, como se o descobrir epifânico, mesmo diluído diante da vida, estivesse presente o tempo todo, tornando aquelas existências simples, pequenas, comezinhas, mas ao mesmo tempo únicas, exemplares, quase místicas.
Assim, Epifanias Marginais é uma espécie de escrita das pequenas catarses e das múltiplas epifanías de seres singelos, frágeis, fortes, múltiplos, bons e terríveis, que atravessam este mundo através de suas beiras, seja das leis, da família ou do capital.
E, por isso, possuem vidas nem sempre reconhecidas, mas profundamente ricas de sentido. São epifânicas não porque se revelam, mas porque revelam a nós a força simbólica do existir pequeno como política, como enfrentamento das grandes narrativas.
Mesmo que singelo, é um livro grande, mas sempre marginal.
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