Descobri que “O Estrangeiro” é um millennial no último dia da peça 

Na última apresentação da peça O Estrangeiro no Teatro Vivo em São Paulo, lembrei de uma série que o criador de conteúdo @henrytado tem no TikTok e no Instagram. Nela, o artista interpreta personagens de várias gerações no ambiente de trabalho. 

A bem caricata versão dos millennials de Henry é alguém completamente desesperado por agradar a todos do seu círculo corporativo, despido de ambições que pensa que precisa fazer mais que o necessário para se manter em um emprego. 

Por que eu lembrei de um tiktoker humorista vendo O Estrangeiro? 

Quem leu a obra original de Camus, sabe que o protagonista de O Estrangeiro, Meursault é uma figura que não demonstra desespero, anseio em agradar outras pessoas ou qualquer emoção extrema, exceto nos últimos momentos do romance. 

É uma leitura que também não faz rir. Talvez saia um ventinho pelo nariz quando Meursault eleva sua permanente atitude de “tanto faz” quando a namorada pergunta se ele a ama, ou quando o amigo declara o apreço que tem pela sua amizade. 

É natural que seja um livro que não desperte o humor. Publicado em 1942 pelo escritor e filósofo Albert Camus, o romance nos lança ao absurdo da vida junto ao protagonista quando este comete um crime levado por algum tipo de impulso desconhecido. 

A partir disso, ele tem que lidar com as consequências de um ato quase inconsciente, tendo que se habituar com uma culpa que não lhe serve direito tal qual uma camisa de botões fechados nas casas erradas. 

Meursault é um protagonista que parece não se importar com nada, nem com a pena de morte que recebe pelo crime pelo qual também não carrega o peso moral por ter cometido. Há quem se sinta angustiado pela leitura. 

Mas O Estrangeiro da peça, interpretado por Guilherme Leme Garcia, fez o público rir. 

Imagem: Folha de São Paulo

Essa é a graça das adaptações, por mais que você conheça a versão original, algo sempre surpreende nas novas interpretações. 

É evidente que o Meursault de Leme Garcia não tirou gargalhadas do público. Mas a sua energia em narrar uma das partes que no livro é uma das mais angustiantes, tanto para o leitor quanto para o protagonista gerou, sim, risos espontâneos. 

A ocasião em que o juiz do interrogatório questiona aturdido por que Meursault não se comove com a imagem do sofrimento de Cristo, já que todos os criminosos se condoíam, é um dos momentos mais densos e delicados do romance. 

É uma das situações em que mais o protagonista se depara com sua condição de estrangeiro na existência, já que não se identifica com o crime, com a culpa, com a moral e com as teatralidades da vida social. 

Na peça, no entanto, a perplexidade corporal de Guilherme Leme Garcia troca esse peso por uma leveza que provoca riso ao pensar em voz alta: “é claro que os criminosos se comovem com o sofrimento de Cristo, eles são criminosos”. Esquecendo-se, evidentemente, da própria sentença. 

E voltamos a O Estrangeiro millennial 

Imagem: Vivo

Depois das risadas, comecei a reparar em quão millennial era o Meursault dessa adaptação. Obviamente, dadas as devidas restrições já que se trata de um personagem dos anos 1940. 

Lembrei do personagem do Henry Tado e vi ali no Meursault do palco, sem os exageros cômicos, a mesma ausência de grandes ambições, a mesma vontade de se manter no emprego mesmo que sem projeção de carreira, a mesma aceitação do marasmo ou do ridículo da vida. 

Millennial que sou também reparei nas minhas semelhanças e de vários outros da minha geração com o Meursault do palco. O apreço imenso por café, a espera pelos sábados, o desgosto pelos domingos. A fraqueza por vinho, cigarros e pelos vícios próprios de quem prioriza atender as necessidades do corpo do que se levar pelas pretensões da mente. 

Faria mais sentido, ao invés de dizer que Meursault parece um millennial, observar que nós millennials parecemos com os adultos que sobreviveram no pós-guerra. Mas qual foi a bomba atômica que nos tornou jovens tão despretensiosos e deslocados? A TV dos anos 90 que vimos na infância? 

De qualquer forma, se a adaptação de O Estrangeiro para o teatro dá lugar a risos e a questões geracionais, resta conhecer as adaptações para o cinema e para a televisão.

Peça O Estrangeiro reloaded

Romance original de Albert Camus, sob direção de Vera Holtz

Com Guilherme Leme Garcia. Retorna aos palcos 10 anos depois com remake da obra prima da literatura mundial.

Classificação 16 anos

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