Na visão de Jorge Farjalla, “Álbum de Família”, de Nelson Rodrigues, é uma peça assombrosa

No ano passado a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo reuniu artistas trans para apontar o que há – ou não – de problemático na obra de Nelson Rodrigues. Eu não estive no papo, mas a discussão em torno das peças de um dos maiores e mais polêmicos dramaturgos do Brasil se estende há anos. “Álbum de Família”, escrita em 1947, logo após sua aclamação com  “Vestido de Noiva”, é provavelmente seu texto mais “cancelado”. 

A peça está em cartaz no Teatro Estúdio, em São Paulo. Na trama, que se passa no interior de Minas Gerais em 1920, Jonas (interpretado por Alexandre Galindo) é o patriarca de uma família tradicional, conservadora e cristã. No íntimo, o homem arrenda meninas para sua satisfação sexual com a ajuda da cunhada; nutre uma adoração exasperada pela filha, Glória; e ultrapassa qualquer tipo de limite no trato violento e homofóbico com os filhos, Edmundo, Guilherme e Nonô, que ficou louco depois de ser aliciado pela própria mãe, Senhorinha (Mariana Barioni). 

Há poucos elementos em cena. Um quadro da “Última Ceia”, de Leonardo da Vinci, e outro da figura de Jesus. Ambos estão manchados de sangue. Há um sofá, onde o elenco se refugia, e outras imagens sacras. O chão é coberto por uma terra vermelha densa. Por fim, uma bacia de água quase suja é usada em momentos distintos. Na visão do diretor Jorge Farjalla, sexo é sobre poder, controle, dominação e devoção. O prazer torna-se apenas leviano quando visto pela ótica de  “Álbum de Família”. 

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À maneira de Nelson, os personagens do texto são arquétipos das obsessões e hipocrisia que formam a nossa sociedade. Nonô, interpretado por Agmar Beirigo, será visto em cena pela plateia somente por duas vezes. Contudo, é de longe um dos personagens mais importantes desta encenação. Correndo nu em volta do palco, o público só escuta seu grito de Nonô que serve ora como um sinal para alertar o perigo, ora como a única trilha possível para esta trama familiar. Farjalla usa o som para como ponto de ebulição do horror. O resultado é poderoso e, inclusive, lembra a mesma angústia sentida ao ver “Zona de Interesse”, filme vencedor do Oscar que passa todo o horror do nazismo usando apenas o som. A belíssima luz criada por Aline Santini, e a cenografia trabalham em conjunto, ampliando a atmosfera de angústia, de condenação. A disposição do palco, dividindo a plateia em dois lados, é um detalhe brilhante: o público encara uns aos outros. Está tudo às claras. Reagimos ao horror ficando em silêncio?

Alexandre Galindo e Mariana Barioni são impressionantes como Jonas e Senhorinha. À medida que o texto anda, Galindo fica mais corcunda, peçonhento, tal qual um bicho. O rosto misterioso de Mariana Barioni, ao contrário de Galindo, implode-se a cada confronto, formando um buraco negro a engolir tudo a sua volta. Lara Paulauskas, vivendo uma das vítimas de Jonas, fecha o que pode ser visto como a trindade de Farjalla: os pais, os filhos e o espírito vingador, o fantasma aprisionado naquela casa para todo o sempre. O cuidado do diretor em decantar as palavras de Nelson Rodrigues está, inclusive, nas cenas menores, como no confronto entre Senhorinha e a ex-mulher de Edmundo (Iuri Saraiva), vivida por Júlia Leite. Usando só um cigarro, Farjalla cria uma gramática silenciosa, gestual, mas capaz de dizer tanto… 

A bacia de água suja também é um símbolo importante em “Álbum de família”. Usada para “lavar” os personagens – ou batizá-los – em cena, o objeto reforça a comunhão de todos os membros da família com a sujeira, a verdadeira religião. Aliás, o ventre da personagem de Lara Paulauskas é chamado de “bacia”, em dado momento, distendendo as leituras propostas pela encenação. Nelson Rodrigues trabalhou uma chave tão pervertida quanto perversa. Talvez, porque quisesse dessacralizar os modos e costumes brasileiros, importados da cultura colonizadora para nos “civilizar”.

Em uma tentativa de jogar o texto para uma expiação científica, lembro de “O mal estar da civilização”, onde Freud teoriza sobre a dor do homem em ser submisso aos limites morais e éticos em nome de uma sociedade civil. É um acordo que resulta na criação das leis, por exemplo. Daí, toda sorte de perversões trazidas à cena estão no nosso DNA. Muito incômodo, não é? De maneira magistral, Farjalla sublinha o quanto esse “mal-estar” ainda se faz presente, e o quanto tal o “acordo” pode ser vilipendiado em nome do próprio horror.  

Há dois meses o deputado federal Sóstenes Cavalcanti baixou um projeto de lei criminalizando as mulheres que fizerem aborto. Em qualquer situação, inclusive estupro. Anos atrás, a então Ministra das Mulheres e dos Direitos Humanos, Damares Alves, liderou a perseguição a uma menina de 13 anos grávida de um estupro. 61,4% das vítimas de estupro no Brasil têm até 13 anos (10,4% têm menos de 4 anos) e cerca de 70% dos agressores são conhecidos das vítimas, principalmente familiares, como o pai, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Se olharmos para esses dados, lembrando da ascensão cristã no Brasil nos últimos anos, a figura devota e conservadora de Jonas está próxima demais. Aliás, o modo como o elenco reza às pinturas, dispostas uma em cada canto do palco, é outro achado da encenação. 

Esse texto foi censurado por 18 anos. Mas Nelson Rodrigues tinha capacidade de ler as mentes das pessoas, extrair do íntimo das famílias o que só podia ser secreto. Há outros exemplos disso em seu trabalho. Se esta versão soa mais pecaminosa, contudo, é porque a realidade e a ficção não se emparelham. Jonas, Senhorinha, Glória e todos os outros, são apenas personagens. Isso é teatro. Horroroso, artístico. Mas apartada do palco, “Álbum de família”, essa peça problemática de Nelson Rodrigues, revela uma pergunta incômoda: qual o país você vê na foto?

Ficha Técnica:

Texto: Nelson Rodrigues
Direção e Encenação: Jorge Farjalla
Elenco: Agmar Beirigo, Alexandre Galindo, Daniel Marano, Fernanda Gidali, Helena Cury, Iuri Saraiva, Jullia Leite, Lakís Farias, Lara Paulauskas, Lídia Engelberg, Mariana Barioni, Roberto Borenstein.

Iluminação: Aline Santini
Cenografia, Figurinos e Adereços: Jorge Farjalla
Assistência de Figurino: Allan Ferc
Visagista: Eliseu Cabral
Assistentes de Visagismo: Camila Santos e Silvia Rocha
Costureira: Denise Evangelista
Direção de Arte: Jorge Farjalla e Mariana Barioni
Trilha sonora: Jorge Farjalla
Desenho de som: Raul Teixeira
Preparação vocal: Lara Córdulla
Operação de Som: May Manão
Cenotécnico: Alício Silva
Fotos: João Kehl
Teaser e Making off: May Manão
Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes
Produção Executiva: Lara Paulauskas e Gabi Manaia
Direção de Produção: Mariana Barioni e Alexandre Galindo
Realização: Teatro Estúdio

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