“Estrangeiro Reloaded”, atualiza clássico de Camus e peça de Guilherme Leme com muita força

Definir a liberdade sob uma ótica existencialista é desafiador. Nessa filosofia, o ser humano não é obrigado a nada, daí pode tudo. Em “O Estrangeiro”, uma das grandes ficções que bebem dessa perspectiva, e a adaptação teatral, “O Estrangeiro Reloaded”, nós conhecemos Meursault, um sujeito simples que recebe um telegrama informando o falecimento da mãe. 

Adaptado ao teatro por Morten Kirkskov, com tradução para o português de Liane Lazoski, a peça em cartaz no Teatro Vivo, em São Paulo, mostra a rotina desse “personagem-ideia” em Marengo, a 80 quilômetros de Argel. Meursault vai até a cidade onde a mãe vivia para preparar o enterro. Chegando ao necrotério, acende um cigarro diante do corpo e oferece ao coveiro, que também fuma. Meursault não reage a nada. Pelo menos, não do jeito que se espera, de um jeito emotivo ou afável. Suas demonstrações são delimitadas por um tipo de letargia. Em dado momento, ele se envolve em um assassinato. É preso. E vai a julgamento. 

Leia também: “Arqueologia do futuro”: espetáculo mistura documentário e ficção para desafiar estigmas dos corpos pretos

Guilherme Leme Garcia interpreta Meursault pela segunda vez. Na primeira montagem, em 2015, o figurino fora camisa social e gravata. A cenografia, uma cadeira, dessas de programa de talk show. Em “O Estrangeiro Reloaded”, um banco preto ocupa a cena e Guilherme usa um macacão da mesma cor. O banco, de alguma forma, ganha sentidos diferentes: ora parece os ponteiros de um relógio, ora um fardo, como se a passagem do tempo de fato assumisse a perspectiva coisificada, pesada. Meursault não liga muito se faz sol ou chuva, se troca beijos com Marie ou enterra a mãe. O absurdo é a própria vida, logo, viver sem se integrar a natureza social, política ou cultural parece uma forma de não se render.

Albert Camus, um filósofo existencialista, trabalhou os conceitos em obras seminais, como “O Mito de Sísifo”. Neste livro, inclusive, Camus rejeita a ideia do suicídio como escape para a falta de sentido da vida. Em vez de morrer, o homem pode aceitar o absurdismo como rotina e, assim, viver livre. 

Meursault parece olhar com angústia para Sísifo, que empurra a pedra pela montanha para daí vê-la cair novamente. As escolhas na vida, tão necessárias quanto ineficientes, feitas para direcionar um tempo imensurável, sempre incompleto, mas nunca vencido, expõe as feridas do existencialismo de modo muito tátil. Se a gente pensa um pouquinho, sem os afagos religiosos, consumistas, ou afetivos, não parece sobrar muita coisa, né? Se Camus oferece a aceitação do absurdo como um modo de viver, o Meursault de Guilherme Leme Garcia baliza esses elementos tão importantes da obra de Camus. Sua voz monocórdica se encaixa na poesia do texto facilmente. E o corpo do ator até parece um tipo de solvente cênico, tornando a química unificada, não menos perigosa.

10 anos depois, e agora?

Se na primeira montagem a jovialidade emprestava uma resistência à Meursault, a maturidade ganhada depois de 10 anos certamente confronta e conforta em graus muito distintos. Há um peso invisível nas costas, uma aceitação na descrença absurdista ao mesmo tempo em que parece devorar o mundo a sua volta com a liberdade de não ser obrigado a nada, a não responder às convenções óbvias de se emocionar diante do corpo da mãe em vez de acender um cigarro, no caso do personagem, ou com a reação da plateia, no caso do ator. 

O monólogo é volumoso, exigente, e ao transformar a plateia em júri do julgamento de Meursault, a direção de Vera Holtz amplifica o espelho diante de nós. É uma encenação contrária à cena teatral do momento, um pouco perdida entre explorar pautas identitárias na reinterpretação de obras clássicas ou achar outros traços contemporâneos relevantes para refleti-las.

Vera olha para o texto sem medo e posiciona “O Estrangeiro Reloaded” em meio a uma sociedade anestesiada por tanta informação, filosofia e tutoriais de como viver melhor, com satisfação plena. Meursault é este arquétipo “digitalizado”, “online”, “cancelado”, “coisificado” em celulares, computadores ou #tbts. Por isso, o confronto com o padre é uma das melhores cenas do espetáculo.

Guilherme Leme Garcia na primeira montagem de O Estrangeiro

O ator cria uma mistura visceral de sentimentos e sensações. Meursault é um estrangeiro de si mesmo, mas também um personagem do seu tempo. O teatro, a arte, ressignifica o absurdo da vida a cada cena, em cada noite, como uma filosofia. O Teatro não é a pedra de Sísifo. Talvez, seja a própria montanha. Assim, a última frase dita por Meursault me parece uma conexão com o mito, ao mesmo tempo em que parece fragmentá-lo em diversas perguntas: se a liberdade é poder fazer tudo, não fazer nada pode ser igualmente libertador? “O Estrangeiro Reloaded”, um espetáculo maravilhoso, não tem a intenção de responder. 

Serviço:

Teatro VIVO

Av. Chucri Zaidan, 2460 – Morumbi, São Paulo-SP

Duração: 70 min 

Classificação: 16 anos 

A temporada vai até 25.07

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