Amanhã (2023): as intermitências da desigualdade em um país dividido

Como será amanhã?
Responda quem puder
O que irá me acontecer?
O meu destino será
Como deus quiser
Como será?


Foi impossível não lembrar deste clássico da música brasileiro quando comecei assistir Amanhã (2023), filme de Marcos Pimentel, produzido pela Tempero Filmes com a Descoloniza Filmes. Só que, por conta do filme, a música que foi samba-enredo União da Ilha do Governador, do Rio de Janeiro, ao invés de trazer só alegria e esperança, ficou um pouco mais reflexiva, intimista. É que a história não é tão simples quanto o carnaval.

Como será o amanhã? Foi isso o que o Marcos Pimentel se perguntou ao filmar a vida de três crianças, Zé Thomaz, Christian e Julia, em 2002 e aguardar 20 anos para voltar a encontrá-las e filmar como tinha sido suas vidas até ali. Zé Thomaz é um menino branco da zona mais rica de Belo Horizonte, Christian e Julia são dois meninos pretos e pobres da favela próxima a uma represa da cidade. Conhecendo nosso país, algumas respostas a gente já poderia adivinhar, mas esta garrafa vazia lançada no futuro também poderia trazer surpresas. E foi nisso que o diretor apostou.

Após essas duas décadas que atravessam não só estas crianças, mas também a história do nosso país que, na época, estava convulsionado por um governo de extrema-direita e uma pandemia, o filme se torna um pequeno retrato de desigualdades. Christian, um jovem alegre repleto de carisma, está em sua 9ª passagem pela prisão. Julia, por outro lado, não foi para o mundo “errado” do crime, mas vivencia com seus dois filhos as dificuldades de uma vida atravessada pela pobreza. Enquanto isso, do outro lado da cidade, Zé Thomaz, o jovem rico, diz que o país está “polarizado” e “dividido” e se recusa a participar do filme. Ou seja, virou bolsonarista.

Uma coisa que sensibiliza no filme são as indas e vindas de Christian e Julia. A moça vivia deprimida e passava dias na cama, às vezes, semanas. Christian também sumia e era encontrado nas bocas de fumo, devendo dinheiro. Do nada, reaparecia com sorriso e vontade de contar mais uma vez sua história. Isso é profundamente marcante porque, enquanto a vida de Zé Thomaz é feita através de uma linha reta em que ele pode construir, desenhar e até destruir, se quisesse, a dos meninos pobres, do morro de frente para o bairro rico foram sempre feitas de intermitências, de tentativas, de ensaios, como se a vida real estivesse sempre para começar, sempre no amanhã.

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A sensibilidade de Amanhã (2023), porém, está em acompanhar essas intermitências e investir nelas, não desistir de seus fracassos e não superestimar seus sucessos. Suas histórias são lindas porque são vividas e contáveis, e contadas. Julia, em determinado momento, conta que ela e seu irmão eram apenas figurantes, que o filme era sobre muita gente que passa por aquilo que eles passam.

Ela tem razão, exceto por uma coisa: o que a gente quer olhar é a vida deles: ela, linda em um ensaio fotográfico e ele, espertíssimo, cantando seu rap com toda consciência de quem é. Eles são protagonistas não porque são heróis, mas porque não se recusam a contar a história com h minúsculo e, assim, fazer a história com H maiúsculo.

Veja o trailer de Amanhã (2023):

Ficha Técnica
Direção: Marcos Pimentel
Com Cristian de Miranda, Cristiana Santos, Júlia Maria
Depoimentos/Imagens de Arquivo: Cristian de Miranda, Cristiana Santos, Júlia Maria
Produção: Luana Melgaço e Vinícius Rezende Morais
Fotografia: Gabriela Matos
Montagem: Ivan Morales Jr.
Som: Vitor Coroa e Pris Campelo
Gênero: Documentário
País: Brasil
Ano: 2023
Duração: 106 minutos
Classificação Indicativa: 14 anos

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