O dia que te conheci (2023): a odisséia de um homem normal que vira musical silencioso

André Novais transforma a odisseia de um homem normal em um musical sem música em “O dia que te conheci”.

No meio de O dia que te conheci, Grace Passô e Renato Novaes brindam na rua em algum lugar do centro de Belo Horizonte com copos plásticos de chopp. “Um brinde. Eu porque saí de lá e você porque ficou”. É meio que resumo de um filme que olha com encantamento para a rotina singela de uma sexta-feira na vida do protagonista Zeca. Celebrando um viés mais que um acontecimento.

Demitido ou não. O que importa é que ele está com ela.

Epítome do homem comum que acorda cedo (com dificuldade) para trabalhar em uma odisseia periférica. Lá e de volta outra vez. De BH para Betim e vice-versa. Encontrando muito de pitoresco no caminho e muito do familiar, que é o que a câmera de André Novais parece destacar sempre sem muito esforço.

A canequinha de café que vai esfriar no pé do sofá porque não deu tempo de levar para a pia antes de sair; o copinho cheio de araminhos de saco de pão no armário; a anotação no azulejo dos dias que passa o caminhão de lixo; o lençol da cama mal colocado, expondo o colchão. Coisas que o plano procura e coisas que ficam lá mas que a gente percebe.

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Para além dos objetos, as situações do dia que sempre parecem entrar no caminho do personagem. Do ônibus que pifa ao pedregulho em que ele tropeça. Como alguém bem definiu depois da sessão, no papo com o cineasta; a vida que acontece entre uma coisa e outra. O filme sempre parece se apegar a esses momentos. Tipo quando eles decidem parar e beber alguma coisa e a gente vê toda a caminhada de algumas quadras dos dois na rua à noite.

A associação direta é a do filme de diálogo mais solto. Estilo trilogia do antes de Linklater. Mas de algum jeito Novais captura certas coisas como se estivesse filmando um musical. Com os planos bem abertos e uma coreografia que fica como um pêndulo entre a correria do dia a dia e a caminhada desatenta. Com música com cara de musical ilustrando momentos em que nada parece estar acontecendo mas que tudo parece acontecer também. Deixando esse movimento “dançado” do dia a dia para os corpos dos atores. Juntos. Enquanto a dupla Renato e Grace brilha com o tempo e a marcação. Desde os olhares nas pouquíssimas cenas de close. Até a sedução banal de detalhes como os dois espremidos para passar na porta do banheiro.

“Você quer uma água?”; “cerveja…”

É um filme que fala de medo de morte, de emprego, de negritude, sem precisar falar disso. Mas sem soar também como uma abstração distante.

Pautado por diálogos singelos que encontram a comédia na repetição ou na simples identificação dos absurdismos surreais que fazem parte da nossa vida. (“esse é o Michael Jackson preto, esse é o Michael Jackson branco”, diz Zeca apontando para o grafite no muro da escola)

Mais para o final do filme, Luisa olha para o vale urbano num bairro belo-horizontino e solta meio sem pensar:

“que bonito…
O dia que te conheci, uma comédia romântica sobre gente de verdade com a saúde mental em dia, soa, no fim das contas, como esse musical sem música. Que toca em todo mundo que vê pela lapidação da dramaturgia e da forma mas também por usar como matéria-prima esses pedaços bucólicos do dia a dia. Que fazem a gente olhar para o que é ordinário e pensar justamente: “que bonito”

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