A Vergonha, de Annie Ernaux: quando a literatura está só

Em literatura, algumas pedras no caminho são difíceis de ultrapassar em uma pequena postagem numa rede social. Uma delas é a literatura de autoficção que tratam de temas tão urgentes como é o caso de toda literatura de Annie Ernaux. Há quem diga que começar a ler a Ernaux por A Vergonha, publicado aqui no Brasil pela Editora Fósforo (@fosforoeditora), é um erro. Que a Ernaux Ernaux está em outros livros como Os Anos. Bom, eu já cometi esse crime e preciso arcar com as consequências dele.

“Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde.”

A Vergonha parte de um evento: uma agressão que o pai de Ernaux cometeu contra sua mãe. O livro é uma espécie de glossário, de vocabulário extensivo construído por Ernaux sobre este evento, mais as memórias do evento, mais as consequências do evento em sua memória.

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A reconstrução exaustiva desse momento, passando até por buscas irrelevantes – como consultar o jornal da data da agressão décadas depois – nos dá a dimensão do esforço de escrever, por outro, faz uso de um recurso que eu chamaria “demasiadamente contemporâneo” que mergulha em um “eu” que, se não é o leitor, não encontra a ponte com um “nós”.

Ernaux é egoísta com suas memórias e não nos oferece nada de imaginação. E isso é bom e é ruim. Diante de uma urgência em contar determinadas histórias talvez seja um dever. Mais do que isso, é até gesto de generosidade oferecer a sua própria vida passada tão a limpo que não resta nem a ficção, com uma literatura tão vazia de recursos (isso é um elogio!). Porém, a gente, enquanto leitor fica solapado com a ausência de qualquer outra coisa que não seja essa memória escassa tão forte e devastadora quanto silenciosa na vida da escritora.

Leia também: “O jovem”: Annie Ernaux retrata a escrita e o papel da mulher nos anos 1990

É aí que entra o mais interesse, curioso e potente da obra: a vergonha. A vergonha genuína é aquela que esvazia a coragem, esvazia o desejo, esvazia a potência, esvazia tudo. A vergonha esvazia a história e a biografia, a vergonha trava até o relato.

A vergonha de um ato que não cometeu e é vítima, destrói Ernaux e, a partir daí, tudo que é dito é atravessado por essa vergonha. Isso é o que podemos chamar de “só” literatura ou uma literatura que sempre, mas nunca vai estar “só”.

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