“Flecha”, livro de Matilde Campilho reúne 200 histórias de outras histórias

Imagine uma flecha disparada no princípio de tudo. E repleta de histórias voando desde então por vários tempos e lugares do mundo. Essa Flecha é o elemento que atravessa as mais de duzentas histórias deste livro. Histórias nascidas de outras histórias, de livros, pinturas ou fotografias; histórias inventadas e histórias escutadas pela própria autora. Crônicas de animais, de objetos, mas sobretudo de pessoas, indistintamente reais ou fictícias.
À maneira de Marcel Schwob, que em suas Vidas imaginárias buscou “atribuir tanto valor à vida de um pobre ator quanto à de Shakespeare”, e captar de cada personagem o detalhe particular, único, Matilde Campilho retrata tanto um imperador quanto uma vendedora de peixes, uma pétala ou um asteroide, flagrando em cada evento — grandioso ou banal — seu matiz peculiar de luz ou de sombra, seu grão de milagre ou de mistério.


Microcontos, écfrases, memórias, miniaturas: neste livro múltiplo e generoso, a autora de Jóquei firma novamente — desta vez em prosa — um pacto forte com a imaginação, prestando uma verdadeira homenagem à literatura, às artes visuais, e a todos os homens e mulheres que, desde que o mundo é mundo, tecem a cada dia a grande narrativa da vida com novas histórias.
Publicado originalmente em Portugal, em 2020, Flecha chega ao Brasil em nova roupagem. Algumas histórias saíram, duas entraram. Adaptou-se levemente a grafia e alguns vocábulos ao português brasileiro. Além disso, como explica a autora no prefácio à edição brasileira:

“Nesta nova edição há também a singularidade das ‘Pistas’: uma lista de coordenadas para os pontos reais a partir dos quais partem certas histórias. E porque muitas delas surgiram da imagem — pinturas ou fotografias —, agora há na parte final um conjunto de reproduções que de uma maneira ou de outra se ligam intimamente aos textos. A última modificação é esta: o ensaio que antes fechava o livro, agora abre-o. Nele é que pensei a ligação entre as histórias mínimas e o tempo, entre o aparentemente banal e o fundamental, entre o sonho e o tangível.”

Flecha (histórias)
Matilde Campilho

352 p. | R$ 59,00 | 13,5 x 18 cm | 319 g | ISBN 978-65-5525-112-8

Compre o livro aqui!

Sobre a autora


Matilde Campilho nasceu em Lisboa, em 1982. Em 2014 publicou em Portugal Jóquei, um livro de poemas, editado um ano mais tarde no Brasil pela Editora 34. Tem vindo a escrever para várias publicações portuguesas e internacionais. É coautora e locutora de um programa de rádio semanal, o “Pingue Pongue”. Vive em Lisboa.

Leia também: 10 poemas para ler

O que Verônica Stigger, autora brasileira, escreveu sobre o livro?


Flecha, o novo livro de Matilde Campilho, é um convite a imaginarmos que estamos numa clareira, no mato, diante de uma fogueira, a ouvir as mais de duas centenas de relatos aqui reunidos. Afinal, como ela diz no ensaio de abertura, o fogo é um dos lugares primordiais da troca de histórias e, principalmente, da escuta:

“Frente ao fogo, todos somos ouvintes”.

Os relatos guardam algo da flecha, que, depois de disparada, atravessa tempos e espaços, absorvendo o que encontra pelo caminho, “seja o cabelo de um homem, o gesto de uma mulher, ou alguma pedra ou açucareiro”. Mas também são como flashes: clarões breves, mas intensos, que nos permitem ver, por um instante, uma cena, uma paisagem, um movimento, uma pessoa, animal ou objeto. É como se só tivéssemos acesso a este único instante, a esta única e rápida visão. Nesse sentido, os relatos não chegam a se constituir em geral como histórias tradicionais, com início, meio e fim. Constituem-se quase como revelações, que iluminam brevemente um momento decisivo e secreto, que pode se encontrar cifrado nas sandálias embarradas do imperador romano, na sensação de solidão durante um voo, no ajoelhar-se diante de um baobá. Como salienta Matilde:

“Certas passagens, certos acontecimentos, são como santuários privados”.

Há um fascinante movimento em operação nas histórias de Flecha. Algumas delas provêm da imaginação, outras de relatos ouvidos por aí, outras ainda de fotografias, pinturas, desenhos, gravuras, que servem de estopim para as narrativas (e o livro traz um conjunto de ilustrações ao final). Há também aquelas que se originam de mitos ou fatos históricos. Ao narrar esses fatos, Matilde Campilho transforma em ordinário o que, em sua origem, era extraordinário, ao mascarar a grandeza do evento mítico ou histórico num relato aparentemente banal. Assim, por exemplo, ela apresenta a queda na Terra do imenso asteroide responsável pela extinção dos dinossauros há 66 milhões de anos: “Um asteroide de mais ou menos quinze quilômetros de diâmetro, viajando sozinho há demasiados anos a altíssima velocidade, colide com a província de Iucatã”. Ou, ainda, o momento em que um inseto é preso na resina de uma árvore, para talvez, milhões de anos depois, ser encontrado dentro do âmbar:

“Uma aranha é apanhada às seis da tarde pela resina que goteja de um pinheiro”.

Na trivialidade mesma do relato, porém, resta algo de incomum, de misterioso, de inapreensível. O extraordinário, camuflado de ordinário, se deixa entrever nas brechas, naquilo que não é dito, na suspensão mesma da narrativa que, por vezes, como no relato do asteroide ou da aranha, termina antes da descrição do grande acontecimento.

E esse movimento do extraordinário ao ordinário, e vice-versa, se desdobra ainda nas “Pistas” compiladas pela autora no final do livro. Nessa espécie de glossário das referências míticas e históricas, o mistério se deixa iluminar um pouco mais. Mas não de todo. Cabe ao leitor, como um iniciado, buscar desvendar o que resta na sombra: as outras tantas histórias por trás destas histórias.

Veronica Stigger

Related posts

O Cochilo de Deus:  Raïssa Lettiére retrata  família em momentos históricos diferentes após “cochilo” de Deus

“O Cordeiro e os pecados dividindo o pão”: Milena Martins Moura resgata a tradição judaico-cristã pelo viés do prazer da mulher

“O que sei de você”, de Éric Chacour, retrata romance entre dois homens no Egito da década de 1980