Lau Siqueira (1957) é gaúcho, natural de Jaguarão e reside desde 1985 em João Pessoa, na Paraíba. Nos anos 70, começou a escrever na coluna literária do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre. Possui diversos poemas publicados em revistas, jornais e antologias no Brasil e no exterior. Estão entre seus livros publicados: O comício das veias (1993), que escreveu em parceria com Joana Belarmino, O guardador de sorrisos (1998), que recebeu o prêmio Dom Quixote, do jornal O Capital, de Aracaju, Texto sentido (1999), Sem meias palavras (2000), Poesia sem pele (2011), Livro Arbítrio (2015), A memória é uma espécie de cravo ferrando a estranheza das coisas (2017), O inventário do pêssego (2020). Com uma temática abrangente e diversificada, continua em constante produção. Sua escrita poética é crítica e irreverente. Muitas vezes, utiliza a leveza de forma inusitada como se brincasse com as palavras.
Confira alguns poemas selecionados:
aos predadores da utopia
dentro de mim
morreram muitos tigres
os que ficaram
no entanto
são livres
sertânica
metade era
soco
outra metade
sopro
e tudo era tanto
pro meu coração
tão pouco
Uma máscara cairá sobre o seu rosto
Os dias se arrastam
numa velocidade
sem limites. No entanto,
sabemos que nada saiu
do lugar.
As ruas estão plenas:
caos e silêncio na espera
de uma normalidade tão
mais louca que a memória
das noites sem estrelas,
sem nuvens, sem lua…
Aquelas que pesam. Perdem
altitude. As que escondem
nossos passos. Comem nossas
sombras e prometem não
amanhecer.
Um inimigo invisível corre
pelas calçadas com motivos
para destruir. Devastando
o silêncio que somos quando
nos tiram o ar.
A morte e a vida caminham
lado a lado. Trocam flores
e trocam tapas. Se escondem
no medo de nunca mais voltar.
(suspiro)
Hoje foi um dia sisudo.
Troquei sementes de cedro
e jacarandá. Não porque
sejam eternas, mas por
serem a própria resistência.
O ignóbil passeia nas redes.
A farsa grotesca da miséria
não esconde a tristeza ou
a tatuagem sangrada dos
que não temem a eternidade.
Mas quando amanhecer
ainda estaremos aqui.
Vamos comer o que sobra
da vida que pouco temos.
Outros serão metade, ou
quem sabe até bem menos.
Alguma coisa invisível
nos jogou contra a parede.
Tudo é mar e tudo é sede.
No alto de um prédio
tremula uma sentença.
Estamos seguros como
o suicida antes do salto.
É bárbaro o que não voa,
mas nos joga pelos ares.
Como se fôssemos
a dobra de toda leveza.
A vida é um susto.
E eu abri mais uma
cerveja.
candura
preciso morrer
de morte natural
pra que ninguém
possa supor
de que bem
é feito o meu mal
Combustão
O que se mostra nu
não é o corpo. Porque
o corpo nu está sempre
escondido debaixo
da pele.
O que se mostra nu
é o avesso.
O que não meço.
O tropeço. O que não
posso, mesmo quando
imerso.
O que se perdeu por dentro
não pode ser exposto. A
menos que a morte aponte
o oposto.
(Eis a vida e seu rosto.)
O que se mostra nu não
é o espírito porque este
nem de pele se veste. É
vento que se espalha
pelo ar. Sem cheiro
de nada.
Apontamentos
apenas…
Daqueles que transtornam,
mas também se derramam.
Como se derramam os
idílios e as bússolas
da travessia.
Necessárias cordas de fio
afiado. Rapel de caminhadas
íngremes e árduas.
Mensurações do abandono
enquanto lado reverso
da solidão.
O que fica além de nós
é a rua do espanto…
No que era tudo
No que era tanto…
Tenho versos para dizer.
Falo de um silêncio que não
cabe no abismo.
Resistência
o que me sustenta
sobre a carne e o osso
é não ter aprendido
a desistir
viver é voar
até sumir
Estatística
Escrever poemas não vale
um corpo caído no asfalto.
Sinais de sangue no sapato.
Riso apagado no ato.
Escrever poemas não vale
a memória dos inimigos da
horda jogados na caldeira
dos silêncios.
Escrever poemas não vale
a noite incômoda e feroz
dos que dormem cobertos
de luas e estrelas.
Escrever poemas não vale
um único segundo de um
dia inteiro penando
injustiças…
Escrever poemas não vale
a primeira sílaba da palavra
morte – derradeira dormida
do corpo e da alma.
Não vale o poema. Não
vale o silêncio sob o manto
dormente das milícias.
Não vale a outra face
navalha no tapa. Não
vale a pele do mapa.
Não vale a trapaça
da dor, ferida aberta
na couraça.
as flores mallarmaicas
queria
num poema
oferecer flores
um jeito lógico
de não arrancá-las
da placidez silvestre
! como as flores
da adivinha mallarmaica
“que nunca estão no buquê”
e cujo aroma experimentamos
nas planícies viageiras
do significado
a palavra pétala
entre húmus e caules de linguagem
embriagando a dor extraída
deste pólen com o qual enlouqueço
as abelhas africanas
do esquecimento
mas tudo que tenho
são essas mãos vazias e uma
paixão petrarquiana
de insuportável hálito
modernista
esgrima
metade de mim
é um beco sem saída
caminho sem volta
traçado sem tropeço
lonjuras disfarçadas
desde o começo
Aboio
Vivemos uma guerra sem assombros.
O que assusta está nos embornais
midiáticos sendo consumido aos nacos
de sincera e homicida razão.
Os tempos não estão loucos. Nem nós
que sabemos, somos poucos.
Há um sinal em cada saco de coragem.
Espigas do cansaço descendo pelo esôfago.
Pode ser que nada disso caiba num poema.
Pode ser que nem o poema caiba no que
dói e assunta.
Tenho vontades imensas. Tesão de trazer
na couraça os fios desencapados da alegria.
Engulo palavras, às vezes. Enquanto outras
me dominam com um aboio
tingindo o mundo.