Vender a alma no cotidiano: 13 crônicas curtas de Clarice Lispector

Nas crônicas que escrevia para o Jornal do Brasil, Clarice Lispector não poderia deixar de conservar uma das suas maiores características como escritora: o seu profundo estupor com o mundo. Num gênero de densidade limitada, como a crônica, Clarice discorre sobre um cotidiano singelo. Mas se tratando da autora, é como se nele fosse como colocada uma lupa. Assim, o cômodo da sua casa, sua rotina como escritora e jornalista, as viagens no exterior e as ruas do Rio de Janeiro são o mundo, em todo o seu peso existencial. Como mesmo diz Clarice em uma de suas colunas no Jornal do Brasil, “continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. […] fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma“.  Na coletânea A descoberta do mundo estão reunidas mais 468 crônicas publicadas semanalmente no jornal entre 1967 e 1973 que, como Lispector, transbordam de constatações existenciais e viscerais.

Seguem 13 de seus textos especialmente curtos que não falham em socar o estômago do cotidiano:

SIM

Eu disse a uma amiga:

– A vida sempre superexigiu de mim.

Ela disse:

– Mas lembre-se de que você também superexige da vida.

Sim.

INSÔNIA INFELIZ E FELIZ

De repente os olhos bem abertos. E a escuridão toda escura. Deve ser noite alta. Acendo a luz da cabeceira e para o meu desespero são duas horas da noite. E a cabeça clara e lúcida. Ainda arranjarei alguém igual a quem eu possa telefonar às duas da noite e que não me maldiga. Quem? Quem sofre de insônia? E as horas não passam. Saio da cama, tomo café. E ainda por cima com um desses horríveis substitutos do açúcar porque Dr. José Carlos Cabral de Almeida, dietista, acha que preciso perder os quatro quilos que aumentei com a superalimentação depois do incêndio. E o que se passa na luz acesa da sala? Pensa-se uma escuridão clara. Não, não se pensa. Sente-se. Sente-se uma coisa que só tem um nome: solidão. Ler? Jamais. Escrever? Jamais. Passa-se um tempo, olha-se o relógio, quem sabe são cinco horas. Nem quatro chegaram. Quem estará acordado agora? E nem posso pedir que me telefonem no meio da noite pois posso estar dormindo e não perdoar. Tomar uma pílula para dormir? Mas e o vício que nos espreita? Ninguém me perdoaria o vício. Então fico sentada na sala, sentindo. Sentindo o quê? O nada. E o telefone à mão.

Mas quantas vezes a insônia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos.

O VESTIDO BRANCO

O vestido branco Acordei de madrugada desejando ter um vestido branco. E seria de gaze. Era um desejo intenso e lúcido. Acho que era a minha inocência que nunca parou. Alguns, bem sei, já até me disseram, me acham perigosa. Mas também sou inocente. A vontade de me vestir de branco foi o que sempre me salvou. Sei, e talvez só eu e alguns saibam, que se tenho perigo tenho também uma pureza. E ela só é perigosa para quem tem perigo dentro de si. A pureza de quem falo é límpida: até as coisas ruins a gente aceita. E têm um gosto de vestido branco de gaze. Talvez eu nunca venha a tê-lo, mas é como se tivesse, de tal modo se aprende a viver com o que tanto falta. Também quero um vestido preto porque me deixa mais clara e faz a minha pureza sobressair. É mesmo pureza? O que é primitivo é pureza. O que é espontâneo é pureza. O que é ruim é pureza? Não sei, sei que às vezes a raiz do que é ruim é uma pureza que não pôde ser.

Acordei de madrugada com tanta intensidade por um vestido branco de gaze, que abri meu guarda-roupa. Tinha um branco, de pano grosso e decote arredondado. Grossura é pureza? Uma coisa sei: amor, por mais violento, é.

E eis que de repente agora mesmo vi que não sou pura.

TRECHO (9 de novembro)

Sobre um personagem que uma vez comecei a descrever e que afinal nem sequer cheguei a deixá-lo fazer parte de um romance: “O que ele realmente e profundamente era, não era visível nem perceptível. O que ele era existia assim como uma praia na Ásia que neste momento em que estais aqui, a praia está lá. Ele mesmo, apesar de não poder se negar, no entanto não se provava nem a si nem aos outros. O que ele realmente era não era passível de prova. O único modo de saberem de sua vida mais real e mais profunda seria acreditar: por um ato de fé admitir essa coisa de que jamais provavelmente teriam a certeza, senão crendo.”

A INSPIRAÇÃO

O busto grande, quadris largos, olhos castos, castanhos e sonhadores. Uma vez ou outra exclamava. Disse com ar alegre, aflito, muito rápido como para que não a ouvissem totalmente:

– Acho que eu não podia ser escritora, sou tão… tão resumida!

Um dia, porém, como escondida de si mesma, teve uma inspiração e anotou no caderno de despesas algumas frases sobre a beleza do Pão de Açúcar. Só algumas palavras, ela era resumida. Muito tempo depois, numa tarde em que estava só, lembrou-se de que escrevera alguma coisa sobre alguma coisa – sobre o Corcovado? Sobre o mar? Só se lembrava de que havia usado as palavras “beleza muito pitoresca”. Foi procurar o antigo caderno de despesas. Por toda a casa. Móvel por móvel. Abria caixas de sapatos na esperança de ter sido tão secretiva quanto a sua inspiração a ponto de guardar o escrito revelador de sua alma numa caixa de sapatos. Teria sido uma boa ideia. Aos poucos a sufocação crescia, ela passava a mão pela testa – agora era mais do que o caderno de despesas que ela procurava, procurava o que a inspiração lhe ditara, vejamos, paciência, procuraremos de novo. O que estaria escrito no caderno? Lembrava-se de que era algo muito espiritual sobre alguma coisa pitoresca. Pitoresco era para ela o máximo. Procuremos, é questão de força de vontade, é questão de ir e pegá-lo. Que desastre – sentia imóvel no meio da sala, sem direção, sem saber onde mais procurar – que desastre. A casa calma à tarde. E em alguma parte havia uma coisa escrita, um pensamento íntimo, disso tinha certeza. Desabotoou afogueada a gola da blusa: não achar seria perder alguma coisa muito sua. Não desanime, dizia-se, procure entre os papéis, entre as cartas, entre as raras notícias que lhe mandavam. Ah, raciocinava ilogicamente, tivessem-lhe escrito mais e ela teria onde procurar. Mas sua vida ordenada era exposta, tinha poucos esconderijos, era limpa. O único esconderijo era a sua alma que uma vez se manifestara no caderno de despesas. Mas que felicidade ter móveis, caixas onde encontrar por acaso. Uma vez ou outra procurava de novo. De vez em quanto se lembrava do caderno de despesas num sobressalto de esperança. Até que, depois de alguns anos, um dia ela disse, modesta:

– Quando eu era mais moça, eu escrevia.

A TÃO SENSÍVEL

Foi então que ela atravessou uma crise que nada parecia ter com a sua vida: uma crise de profunda piedade. A cabeça tão limitada, tão bem penteada, mal podia suportar perdoar tanto. Não podia olhar o rosto de um tenor enquanto ele cantava – virava o rosto magoado, insuportável, não suportando a glória do cantor. E às vezes comprimia o peito com as mãos bem enluvadas – assaltada de perdão. Sofria sem recompensa, sem mesmo a simpatia por si própria. Até que um dia se curou assim como uma ferida seca.

Foi essa mesma senhora, que sofria de sensibilidade como de doença, que escolheu um domingo em que o marido viajava para procurar uma bordadeira. Era mais um passeio. Quanto a isso nada se podia dizer contra: ah ela sabia passear. Como se ainda fosse uma menina que passeia na calçada. Sobretudo quando sentia que seu marido a enganava.

Assim foi procurar a bordadeira no domingo de manhã. Desceu uma rua cheia de lama, de galinhas, de crianças nuas. A bordadeira, na casa cheia de filhos em vias de fome, o marido tuberculoso – a bordadeira recusou-se a fazer a blusa porque não gostava de ponto de cruz!

Saiu afrontada e perplexa, com a liberdade da bordadeira. Sentia-se tão suja pelo calor da manhã. Um de seus prazeres era o de pensar que sempre, desde pequena, fora muito limpa.

Em casa almoçou e deitou-se no quarto meio escurecido, cheia de pensamentos maduros e sem amargura. Oh, por uma vez ao menos não sentia nada. Senão essa espera. Na meia escuridão.

DO MODO COMO NÃO SE QUER A BONDADE

Y com sua enorme inteligência compreensiva, dedicando-se a não ser humana, no sentido em que ser humana é também ter violências e defeitos. Dedica-se a compreender perdoando os outros. Aquele coração está vazio de mim porque precisa que eu seja admirável. Todos recorrem a ela quando estão com algum conflito e ela, “a consoladora oficial”, entende, entende, entende. Minha grande altivez: preciso ser achada na rua.

DESCULPEM, MAS SE MORRE

Morreu o grande Guimarães Rosa, morreu meu belo Carlito, filho de meus amigos Lucinda e Justino Martins, morreu meu querido cunhado, o embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Mozart Gurgel Valente, morreu o filho do Dr. Neves Manta, morreu uma menina de 13 anos do meu edifício deixando a mãe tonta, morreu o meu tonitruante amigo Marino Besouchet. Desculpem, mas se morre.

MAS HÁ A VIDA

Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata.

FUTURO IMPROVÁVEL

Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto – serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de “dois e dois são quatro” é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto.

UM ADOLESCENTE: C.J.

Ele é grande, tem ombros de ossos largos, anda um pouco curvo: isto passa, é o peso da adolescência. Ele é lento, ele é profundo, ele semeia devagar. Na cara de camponês grosso a profundeza calada de camponês. Ele dormirá bem com uma mulher. Se não se enrolar demais nos largos e fundos meandros de suas pesadas hesitações. Ele é calado, não sabe ainda falar o que se costuma falar, e então não diz. Também não sabe que tem pernas retas, pesadas e bonitas. Uma vez falou: quero qualquer profissão que me baste para viver; pois enquanto isso teria tempo de fazer alguma coisa “concreta, muito objetiva”. Ele é desastrado, quebra coisas sem querer, pede desculpas com um meio-sorriso assustado. É preciso ter paciência com ele. É preciso ter paciência com os que são grandes como ele. Tanta paciência. Porque ele pode vir a ser esse silencioso desastrado a vida toda, e não passar disso. É um dos tipos de adolescência mais perigosos: aquele em que muito cedo já se é um homem um pouco curvo, e também nele se sente a grandeza sem palavras.

PALAVRAS APENAS FISICAMENTE

Na Itália il miracolo é de pesca noturna. Mortalmente ferido pelo arpão, larga no mar sua tinta roxa. Quem o pesca desembarca antes de o sol nascer – sabendo com o rosto lívido e responsável que arrasta pelas areias o enorme peso da pesca milagrosa: il miracolo amore. Milagre é lágrima na folha, treme, desliza, tomba: eis milhares de milágrimas brilhando na relva.

The miracle tem duras pontas de estrelas e muita prata farpada.

Le miracle é um octógono de vidro que se pode girar lentamente na palma da mão. Ele está na mão, mas é de se olhar. Pode-se vê-lo de todos os lados, bem devagar, e de cada lado é o octógono de cristal. Até que de repente – arriscando o corpo, e já toda pálida de sentido – a pessoa entende: na própria mão aberta não está um octógono, mas le miracle. A partir desse instante não se vê mais nada: tem-se.

Para passar de uma palavra física ao seu significado, antes destrói-se-a em estilhaços, assim como fogo de artifício é objeto opaco até ser, no seu destino, um fulgor no ar e a própria morte. Na passagem de simples corpo a sentido, o zangão tem o mesmo atingimento supremo: ele morre.

TRECHO (3 de março)

Era profundamente derrotado pelo mundo em que vivia. E separara-se das pessoas pela sua derrota e por sentir que os outros também eram derrotados. Ele não queria fazer parte de um mundo onde, por exemplo, o rico devorava o pobre. Como parecia-lhe um movimento apenas romântico, o seu, se se agregasse aos que lutavam contra o esmagamento da vida como esta era, então fechou-se numa individualização que, se não tomasse cuidado, podia se transformar em solidão histérica ou meramente contemplativa. Enquanto não viesse algo melhor, procurava relacionar-se com os outros derrotados por intermédio de uma espécie de amor torto, que atingia tanto os outros como, de algum modo, a si próprio.

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