5 poemas para conhecer (e sentir) a infância de João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto é um dos mais relevantes e incríveis poetas brasileiros de todos os tempos. Nascido no Recife em 1920, tem sua poesia caracterizada pelo rigor estético e pela capacidade de transformar sensações e sentimentos em palavras. O livro “O artista inconfessável” é, como apontado no texto de orelha da belíssima edição da Alfaguara, “uma espécie de autobiografia poética” do autor. Dividido nas seções “Infância e juventude”, “Viagens”, “Sevilha, Espanha” e “Retrato do Artista” e com inúmeras fotos de João Cabral de Melo Neto quando criança e jovem, o livro reúne poemas que nos ajudam a conhecer (e sentir) as vivências do autor em sua terra natal e através de suas andanças pelo mundo.

O NotaTerapia selecionou 5 poemas belíssimos para conhecer um pouco mais sobre este grande nome da literatura brasileira, especialmente a partir do que ele escreveu sobre sua infância. Confira!

Veja AQUI 10 vídeos com poemas de João Cabral de Melo Neto
Leia AQUI os 12 melhores trechos de Auto do Frade, de João Cabral de Melo Neto

Dúvidas apócrifas de Marianne Moore

Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?

Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?

A coisa de que se falar
até onde está pura ou impura?
Ou sempre se impõe, mesmo
impuramente, a quem dela se falar?

Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?

O Jardim de Minha Avó
Qualquer chácara então podia
com a necessária vacaria;
possuir um riacho privado
como se possui um cavalo;
manter rouças de bananeiras
nas suas vertentes mais feias
(como as cidades, que os bordéis
plantam nas zonas de viés);
ter um jardim, com jardineiro,
para os estranhos e estrangeiros
que alguma vez aparecessem
a comparar com os que tivessem.
E ainda podia no quintal
dar-se a um jardim mais pessoal
como o de minha avó da Jaqueira,
oculto de quem sai ou chega.
Jardins que as visitas não viam,
que poucos viam, da família,
mas que tratava com a pureza
de quem faz diário para a gaveta.

Menino de engenho

A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.

Menino, o gume de uma cana
cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.

A cicatriz não tenho mais;
o inoculado, tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina.

Descoberta da literatura

No dia-a-dia do engenho,
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
Sentados na roda morta
de um carro de boi, sem jante,
ouviam o folheto guenzo,
a seu leitor semelhante,
com as peripécias de espanto
preditas pelos feirantes.
Embora as coisas contadas
e todo o mirabolante
em nada ou pouco variassem
nos crimes, no amor, nos lances,
e soassem como sabidas
de outros folhetos migrantes,
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante,
e, sem querer, imantara
todos ali, circunstantes,
receava que confundissem
o de perto com o distante,
o ali com o espaço mágico,
seu franzino com o gigante,
e que o acabassem tomando
pelo autor imaginante
ou tivesse que afrontar
as brabezas do brigante.
(E acabaria, não fossem
contar tudo à Casa-grande:
na moita morta do engenho,
um filho-engenho, perante
cassacos do eito e de tudo,
se estava dando ao desplante
de ler letra analfabeta
de curumba, no caçanje
próprio dos cegos de feira,
muitas vezes meliantes.)

Prosas da Maré Jaqueira [8]

Maré do Capibaribe
na Jaqueira, onde menino,
cresci vendo-te arrastar
o passo doente e bovino.

Rio com quem convivi
sem saber que tal convívio,
quase uma droga, me dava
o mais ambíguo dos vícios:

dos quando no cais em ruína
seguia teu passar denso,
veio-me o vício de ouvir
e sentir passar-me o tempo.

 

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