Zulmira Ribeiro Tavares (1930-2018) foi uma contista, romancista e poeta paulistana. Em 1952, ingressou no curso de formação em cinema no Museu de Arte de São Paulo e, durante algum tempo, atuou como pesquisadora e crítica de cinema. Em 1955, estreou na literatura com o livro de poemas Campos de Dezembro. Em 1974, lançou Termos de Comparação, uma mescla de poesia, ensaísmo e ficção. No mesmo ano, recebeu da Associação Paulista dos Críticos de Arte o prêmio de revelação pela obra e, em 1991, ganhou o prêmio Jabuti de romance, com a obra Jóias de Família (1990). Além disso, possui outros títulos publicados como O Japonês de Olhos Redondos (1982), O Nome do Bispo (1985), O Mandril (1988), Café Pequeno (1995), Região (2012) e Vesuvio (2012). Embora pouco conhecida pelo grande público, pois raramente aparecia em eventos literários ou concedia entrevistas, sua escrita é marcada pelo rigor e preciosismo e, segundo críticos, a obra da autora é dotada de grande qualidade estética.
Conheça alguns poemas da autora:
Juízos
O amor é essa intrépida
imaginação da carne
essa carne destemida
que se julga autora.
Essa vigilância que aguarda
no recuo,
pronta para o salto.
O amor é o salto
o vértice de um pensamento
que por demais repleto
de mundo percebido pela fresta
perde os seus limites de conceito nítido:
escorre.
O amor é a perda do mundo,
o sal e a água chorados
pelo outro lado dos olhos:
o lado do impulso e do arremate
o lado que celebra as normas.
O amor é o bravo
destemido riso
de toda a epiderme rindo
perdidamente
da imaginação traída.
Surfista
Tinha o corpo pronto para fazer filhos
e surfar a grande.
Não lhe guardei o nome. Era um homem
de ancas estreitas e ombros largos.
O seu peito arrostava os repelões do ar.
Não perdia o equilíbrio
e a musculatura o trazia
a um palmo acima da água.
Tanta força e destreza
vinham-lhe do arcabouço exato.
Veloz, impunha respeito às gaivotas.
Elas não lhe batiam no crespo da cabeça
de caracóis duros como os das estátuas.
Era um homem feito
e sabia o quanto. Ele pensava
a sua descendência de ouro.
Esperma e espuma fosforesciam na noite.
O surfista corria pelo escuro do mar
sonhando novos obstáculos –
o olhar esperto e vigilante.
Golpeado por um impulso a contrapelo
– vagalhão sem lei –
a prancha partiu-se em dois
e os urubus lhe abriram espaço
no céu das gaivotas.
Da praia sua descendência se desata
no raso da vazante – maré vazia.
Circunvoluções e invólucro
Não tenho medo de ir à Lua.
Vou
Volto
Continuo
dentro
da
cápsula.
Não sou astronauta
coisa nenhuma.
Sou
o único
remanescente
de uma
consciência
cheia
de nódoas? – Nunca.
De nós-pelas-costas.
Vida: objeto de desejo
Nós desejamos pinguins.
Não os de geladeira
com seu peso fixo de massa pintada
sua estatuária de cozinha
sem nenhum sopro de da Vinci.
Nós desejamos pinguins.
Não os das geleiras
que nos esfriam os dedos
ao toque de suas penas firmes.
Frios são os caminhos que a morte nos envia.
Desejamos os pinguins de nosso assombro
fechados dentro de nós no desejo
como pérolas nas ostras.
Ostras não sabem das pérolas
que engendram e trazem consigo.
E nós que os formamos do escuro,
deles só temos o rastro, pinguins,
com seu brilho
de nácar.
Vesuvio
Tua cabeça a prumo emplaca o tempo.
Dentro dela guardas o Vesuvio
que nunca chegaste a ter em pedra e lava,
mas em tela, plasma, figura.
Perto do Vesuvio, em esfuminho,
o perfil de teu amor esvaecido
há tantos anos.
E escutas chegar pelo esfuminho
como por um canal de cinzas
o professor Silvério cantarolando
nas aulas de desenho, o teu fracasso.
E tens no teu fracasso a mão direita
duplicada dentro da cabeça
suja de carvão e tinta a óleo.
A esquerda se apoia no joelho
e faz figa para o mundo: um sucesso.
Tua cabeça a acolhe com ternura
e com firmeza a ambas:
a submissa e a da recusa.
Um dia arrastarás, a tua cabeça,
para altas esferas,
como o saco de Noel (que delas desce)
a quem chamam pai,
papai para os pequenos —
pelo que distribui de vida adulta
adiantada em maquete e aos pedaços
com o impagável nome de brinquedos.
Cruzarás com ele e te farás de sonso.
Já tu agora de nada queres ser destituído.
Isso foi antes.
Sem acordo com Noel, não distribuirás,
e a usura será a tua força.
Sobre o teu pescoço, firmes
como o saco de Noel nos ombros,
terás dentro da cabeça
vivos, tudo:
do Vesuvio em tela à lava do teu corpo.
Maioridade da mãe
Aberta a porta da rua
por ela escaparam curiosas
crianças-criaturas-transeuntes
luminescentes tortas rebarbativas.
Gritaram pela porta aberta:
São suas
e da casa saem.
Não são minhas
não é meu o peso
que me escapa pela porta –
devolvi como resposta
como devolução definitiva.
Termos de Comparação
São lidos por especialistas
um pequeno círculo
ávido.
A avestruz é um bicho-raro.
O poeta uma ávis-trote.
A avestruz engole
tudo: parafusos em princípio.
O poeta não
digere uma
única partícula.
Tudo: fica-lhe atravessado.
no papel, para tanto
estraçalha e regurgita –
ei-la: a Arte!!
Com quantas letras escreve-se “destroço”?
e “pútrido”?
com quantas, “estrutura”?
Para escrevê-las
com quantos dentes mastiga-se?
para romper certas palavras
o que se morde? o que sangra de início,
a língua?
Mas quem morde a língua
é o arrependido,
o que se cala.
Por isso a avestruz
é o bicho cândido.
O poeta, o tão difícil.
Todo o mundo sabe que ela é simples.
Cada enciclopédia a determina.
Ninguém confunde
a localização das plumas
o bico contra o peito: direção na fuga
o parafuso dentro
do estômago.
Vamos devagar com os poetas.
Por que são aves?
Porque regulam o peso de seus braços
e conforme cismam – voam.
Ávis-trotes porque pulam
inesperadamente
e quebram os braços.
Lidos por um grupo ávido.
Por que ávido?
por que de especialistas?
por que lidos?
Porque: –
não engolem
nem recusam
porque atrapalha
o comum espetáculo circence
do parafuso descendo pelo esôfago
o seu engasgo, o seu espasmo.
Porque são
intrusos.
Não se aceitam ávis-trotes
nos circos – Não comem espadas
muito menos fogo.
Porque não se juntam
ao comum dos espectadores
na arquibancada
mansamente digerindo sobras.
Porque não têm país certo
assinalado no mapa
como sói acontecer às avestruzes.
Seu país é
Nenhures.
Terra de difícil acesso
sujeita tanto
aos roedores
quanto à ação
das irradiações atrozes.
Em Nenhures
os acontecimentos desencadeiam-se fatais
ou, ao contrário, lúdicos.
Por exemplo em Nenhures
as unhas crescem
sozinhas do solo
simples para
beliscarem certas
zonas glúteas
É o cúmulo! – dizem todos –
É impensável!
Num país sujeito a irradiações
e à fatalidade
as unhas crescerem
e para isso!
Por isso os especialistas se interessam
Por isso sabem
São especialistas, por isso
poucos.
A ávis-trote
– nome científico, o vulgo a conhece por poeta –
também
é estudada nas escolas
fora do círculo.
Mais escassas fazem-se as respostas
a curiosidade nas crianças amaina-se
acalma-se, o poema: ovo choco muita vez
pois o poeta é fase histórica
não escapa –
raramente põe-se
como objeto de estudos.
De seu autor, pouco provável que se tenha
uma noção menos confusa.
O povo aclama a avestruz!
as plumas! ah!
a esplêndida
aventura audaz do parafuso!
Um estado muito interessante
Conheço o meu país
no escuro – pelo tato.
E se me amarram as mãos nas costas
conheço pelo cheiro.
E se me tapam o nariz
ainda assim conheço o meu país
pelo que dele sobra
à minha volta.
Não conheço o meu país pela boca.
Não conheço o meu país pelos ouvidos.
Não conheço o meu país pelos olhos.
O que a boca solta o ouvido não encontra,
o papel não grava, o olho não recorta.
Conheço o meu país
mas não o conheço de dentro.
Também não o conheço de fora.
Conheço-o de lado.
Quer dizer que o conheço
sem relevo.
Muito curioso esse país rasante
como um vôo rasteiro.
Meu país bicho-de-concha
para dentro de sua casca
sem contorno.
Muito curioso esse país no escuro
sem local exato de pouso
para os dedos.
Muito curioso esse país de cheiros
sem apoio.
Muito curioso
e muito interessante.
O termo é este.
Um país interessante
é como uma mulher em estado interessante?
Uma mulher em estado interessante
sempre acaba
em trabalho de parto?
inevitavelmente? não há outra saída
além daquela prevista na barriga?
Um país muito barrigudo
é uma mulher inchada –
de basófia ou filhos?
A comparação não cabe, entre pessoas
estados, de corpo, alma
e federativos?
Ou cabe até demais?
É isto mesmo:
Tudo cabe em um país.
Ou não?
Como tirar a dúvida?
Por exclusão
do que primeiro?
estados? almas? pessoas?
o que fica? sobra? federação? filhos?
O que faço
se não controlo as respostas
pela boca; assobio?
Deixo passar em brancas nuvens
o que o olho não viu
se tinha cores?
Por que não me conformo
pelo meu país a gastar menos
a só usar uma narina e um dedo?
Por que o anseio
de vir a conhecer a raiz dos cheiros
relevos posição dos corpos mares rios
rotas ares esquadrias?
Tão sentimental vou indo
olhos de leitura sem legenda
e boca sem sentenças
indo estou voltando
ao ponto de partida
No escuro meu país é simples.
Dois sentidos bastam.
E sobram.
Sem nenhum sentido
meu país teria
a mais perfeita ordem.