Podemos considerar que a escrita que se eterniza como literatura é o maior limite da expressividade alcançado. Escritores de prosa ou poesia, ao materializarem o âmago infinito de um ser humano, tornam legível e apreensível aquilo que, de tão soterrado pela indelicadeza do nosso ego, não se conhecia antes de ser lido num poema ou num livro. Mais do que isso: o processo da escritura é o que garante o caráter subjetivo ao ser humano, diferenciando-o de outras espécies, principalmente, pela sua capacidade de exprimir as próprias contradições.
Mas o direito e reconhecimento por essa escritura não foi garantido a muitos representantes de grupos sociais de nossa sociedade. As mulheres, por exemplo, apesar de constituírem mais da metade da população, tiveram sua expressividade mais subjetiva – e que atinge seu ápice na literatura – negadas por muitos anos. Esse silenciamento ocorreu (e ainda ocorre, em alguns países) de diversas formas, sendo uma consequência tanto da negação à educação formal quanto da inferiorização de seu intelecto e de sua capacidade comunicativa.
As faltas que tu sabes que possuo,
Enterrem-nas na cova onde me incluo;
E se alguma virtude houver em mim,
Vívida viva em tua alma e, alfim,
Quando não mais sentires dor, como eu,
Ama quem antes já te protegeu.
– Anne Bradstreet (“Before the birth of one of her children”, tradução)
O silenciamento se manteve atrelado à estruturação social e, por isso, normatizado. Quando alguma mulher conseguisse, por mérito individual, identificar esses muros que cerceavam sua possibilidade expressiva e burlá-los, estaria não apenas desbravando o que os escritores já desbravavam sobre a subjetividade humana, mas, principalmente, estariam afirmando a si mesmas como Sujeito – caráter que nem sempre lhes foi afirmado. Foi o caso de Anne Bradstreet e Emily Dickinson: duas poetas norte-americanas que pavimentaram o caminho para que outras mulheres também pudessem romper com a “angústia da autoria”.
A ansiedade (ou angústia) da autoria é uma revisão feminista do conceito de Harold Bloom sobre a tradição de grandes autores da literatura: para ele, quando um “poeta forte” se inscreve na eternidade do cânone, cria também um mal-estar nos futuros poetas que, sempre se mantendo à sombra dessa grande influência, nunca conseguirão alcançar o mesmo nível de expressividade se não a aniquilassem com a mesma capacidade inventiva.
Só que a ideia de Bloom não contempla a questão da escrita realizada por mulheres, haja vista que o gênero feminino era considerado incapaz – por quase beirar o não-humano – de exprimir da mesma forma que os homens e não tinham “predecessoras” ou “poetisas fortes” a quem superar. Em outras palavras, não tinham sequer sua própria tradição. Sandra Gilbert e Susan Gubar, autoras do estudo de crítica literária feminista The Madwoman in the Attic e do próprio conceito de “ansiedade de autoria”, reiteram: “[…] se as mulheres contemporâneas hoje experimentam a caneta com energia e autoridade, elas são capazes de fazê-lo somente porque suas precursoras oitocentistas e novecentistas lutaram contra um isolamento que parecia doença […]”.
Percebe-se na poesia de Anne Bradstreet a recorrência de temáticas como os conflitos entre a sua religião e seu anseio pela escrita, além daqueles conflitos entre a própria “eternidade” que alcançaria com o contato com Deus e as condições terrenas que tanto a agradavam. Bradstreet, confinada a sua vida doméstica, pôde superar a angústia da autoria feminina e exprimir a condição limitante das mulheres de sua época. Todavia, há de se ressaltar que foi autodidata, tendo acesso à leitura de grandes autores em sua casa. Sua biblioteca pessoal tinha mais de 9000 obras sobre política, medicina, literatura, história e teologia. Além disso, Bradstreet usufruía de uma posição social que permitisse sua publicação e escrevia sobre assuntos socialmente aceitos para serem abordados por uma mulher. Como resultado disso, foi a primeira mulher das colônias britânicas a ter sua obra publicada – e ainda em vida.
Uma palavra se abre
Como um sabre —
Pode ferir homens armados
Com sílabas de farpa
Depois se cala —
Mas onde ela caiu
Quem se salvou dirá
No dia de desfile
Que algum Irmão de armas
Parou de respirar.
– Emily Dickinson (traduzido por Augusto de Campos)
Nascida quase dois séculos depois de Bradstreet, Emily Dickinson ainda não pôde usufruir do reconhecimento de sua predecessora enquanto viva. Dickinson morreu aos 55 anos e viveu grande parte de sua vida sob um teto que não era seu – no sentido metafísico e experimental que Virginia Woolf elenca em seu livro Um teto todo seu.
Em outras palavras, as primeiras mulheres escritoras, aquelas que colocaram os primeiros cascalhos do caminho palmilhado pelas britânicas Austen e Woolf, pela americana Sylvia Plath e pelas nossas Clarice Lispector e Hilda Hilst (e isso somente para citar aquelas que já são reconhecidas canonicamente), não tinham o espaço e o privilégio econômico para viverem de sua escrita e sabiam que não seriam reconhecidas tão cedo, principalmente se decidissem agir de maneira transgressora.
Evidente que essa maneira “transgressora”, para aquela época, seria a forma autoral e confiante de se firmar como sujeito por meio da escritura – ou seja, a maneira de que todos os homens agiam. O teto limitador de Dickinson – que viveu semienclasurada – por sua vez, pode ser identificado na imagética recorrente de pequenos e ínfimos detalhes que não saltariam ao olhar de quem conhece mais do que a vista das próprias janelas.
O lar com mais de 8 filhos de Bradstreet e o teto solitário de Dickinson, entretanto, tornaram o cerceamento da linguagem feminina expresso naquilo que mais poderia ser utilizado para combatê-lo: a poesia, e tudo de humano que ela implica.