E se Orwell, Huxley e Bradbury tivessem acertado?

Ferveu-se o mundo como água em panela de aço. E o aquecimento global não é o maior dos problemas mas as bolhas que estouram e para cima jogam os respingos mais vapor que queimam os nossos olhos. E assim tem sido, crise após crise, cada vez mais enxerga-se menos com a vista condicionada a identificar apenas vultos do real. Nessa época de livros como Jogos Vorazes ou séries como 3%, as distopias se tomam cada vez mais lugar para avisar-nos da próxima bolha que poderá estourar, porém, leitor, aqui questiono: e se autores distópicos como George Orwell (1984, publicado em 1949), Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo, de 1932) e Ray Bradbury (Fahrenheit 451, de 1953) tivessem acertado algumas de suas previsões, o mundo estaria tão diferente de como é agora?

Bem, pouparei a nós de trazer grandes detalhes das tramas, para focar nas suposições. Em 1984, por exemplo, temos a presença do Big Brother, e se você já leu sabe que a relação do Reality Show com a realidade é, de certa forma, proporcional à sua relação com o conceito do Grande Irmão. Mas imagine, leitor, um líder que a tudo vigia e a todos vê: existiria um líder que não só observa, mas está em todo lugar e a todos tenta controlar o que cada nação ou indivíduo deve ou não fazer. Isso poderia existir nos dias de hoje? Considere que aqueles que se negam a acompanhá-lo, sofrem punições e afastamento desse meio e, após um “tratamento”, o pobre louco estaria apto a retornar. Isso em tempos de BrExit, FrExit, ou até do recolhimento Norte-Americano… Ou então, lembre-se do grau de controle tão grande que permeia até entre os próprios cidadãos, que enrigece não só as atitudes, como também os pensamentos, quase como um política/socialmente ideal (para não dizer correto) adotado e seguido cegamente pela população e que, apesar de possuir um rosto – de ser possível identificá-lo, tal como a Polícia do Pensamento –, é muito difícil de atingi-la por não ser tão palpável assim, e está aí para regular a todos arbitrariamente. Não, não sei se isso seria possível.

Muito menos se nos lembrarmos do pobre Goldenstein e seus dois minutos de ódio, só para libertação das emoções mais primitivas humanas e reforçar o que sofre aqueles com poder que se negam a seguir o Grande Irmão. Parece-me impossível hoje em dia o surgimento de não um, mas vários Goldensteins – ou bodes expiatórios, caso prefira, leitor – que seriam sempre erguidos como aqueles a serem odiados pelo menos dois minutos por dia como reforço daqueles que ousam não seguir a grande liderança.

Ou então, mais tenebroso que o próprio Grande Irmão, suponhamos que Orwell acertasse com a Novilíngua. Muito difícil, não acham, leitores? Poderia haver a remoção de palavras ou condensação de tantas outras, para que os seus significados desaparecessem das nossas vidas e do imaginário; pense em termos ou conceitos que pudessem ser repetidos mecanicamente por qualquer um, de forma que o que o dito seja – de fato – algo complexo, mas se esvaziasse de conteúdo de forma que se reduzisse qualquer capacidade de discurso, seria como se termos como práxis, alienação ou até fascismo, fossem usados sem reflexão, vazios. Ou seja, termos desapareceriam cada vez mais, significados seriam empurrados para outras palavras, isso quando outros termos não seriam repetidos num grito papagaístico. Realmente, não sei se isso seria plausível de ocorrência, ainda mais no nosso país.

O psitacismo como regra?

Impossível.

Mas prossigamos com as suposições: também há o duplipensar, que, mais importante e tenebroso, e levando em consideração o período boêmio do autor, somente de lá deveria ter surgido essa ideia, já que, novamente, ele não poderia ter acertado aqui. Esse conceito acaba adentrando até a Novilíngua, pois pensar e materializar o pensamento em linguagem – e até a lógica – são derivados de uma relação íntima. Negrobranco é um conceito usado, por exemplo, dentro do partido para afirmar a sua lealdade, ao dizer incontestavelmente que negro é, pasmem, branco. Se trouxermos para a atualidade, leitores, será que encontraríamos possibilidade nisso: seria irreal, por exemplo, um católico acreditar no budismo e no islamismo como verdade mútua? Ou haver um anarco-marxista? Seria perigosíssimo nos dias atuais, caso Orwell tivesse acertado nesse ponto.

Engana-se, no entanto, que só Orwell fez uma história capaz de aterrorizar os homens de seu futuro. Huxley, por exemplo, previu uma sociedade em que os bebês eram todos nascidos em proveta e já nasciam com características pré-determinadas. Felizmente, as pesquisas e trabalhos genéticos me parecem distantes da criação de um ser humano com olhos azuis ou com características predeterminadas a bel prazer de quem quer que comande ou deseje isso. Alguns afirmarão, leitores, que essa cena nos lembra mais a realidade de Krypton, no início do filme O Homem de Aço, do que a realidade na Terra.

Huxley também ousa bastante ao trazer uma sociedade que deseja viver e põe todo o peso de sua idolatria no próprio prazer e toda sua fé na ciência. Enquanto Orwell trazia uma sociedade em que o sexo mal era permitido, Huxley brinca com um sistema em que, presos pela SOMA, os cidadãos da obra de Huxley são incapazes de parar dez segundos para refletirem por sua vida sem que sintam dor por isso.  Além disso, eles não só repudiam todo esforço intelectual, como também trazem um cientificismo mais-que-digno do século retrasado: é como se Augusto Comte fosse guru espiritual de todo um povo. Peço agora um esforço imaginativo a vocês, leitores, e que pensem numa sociedade dotada desse repúdio ao conhecimento e ao rigor intelectual. Esforcem-se para imaginar, mas não muito, porque, de fato, é algo que ele não poderia ter acertado – ou antes que sintamos dor. Seria verdade se, no Brasil de hoje, ocorresse tal como a cena de Policarpo Quaresma, na qual o Doutor Segadas afirma ser pedantismo que Quaresma tivesse tantos livros pois não era nem formado.

Já Bradbury, quando escreveu seu Fahrenheit 451, acerta curiosamente, sobre os fones de ouvido, que são como pequenos besouros a zunir nos ouvidos o dia todo – tanto que as pessoas, ou pelo menos a esposa do protagonista, mal ouvia os outros, era perita em leitura labial. No entanto, se ele tivesse acertado ao falar de como esse uso excessivo desses meios tira a atenção, e como os grandes telões que passam novelas e bombardeiam mais e mais com informação também servem para romper os laços sociais, não viveríamos nesse mundo maravilhoso, quase utópico, no qual vivemos. Clarice, personagem do livro, ao descrever sua sociedade, parece distante de nós ao questionar o que há de social em reunir as pessoas e não as deixarem falar. De fato, muito distante da nossa realidade.

Tanto mais da relação acerca da intelectualidade dada por Huxley e reforçada aqui por Bradbury: os livros são queimados pelos bombeiros – o que pode nos fazer lembrar do duplipensamento de Orwell, mas ainda bem que isso só acontece na literatura – tudo para que se faça uma “brecha no espírito do homem”, diria Ray no seu romance. Mas, novamente, tal como só poderia acontecer em um livro, Montag, o protagonista, consegue escapar e viver numa sociedade, pasmem, novamente, marginal de intelectuais que não só leem, como também decoram o que está escrito e passam até a ser chamados pelo título da obra que dominam. Curioso como a literatura dentro da literatura tem esse efeito de mudar e até causar esse efeito de reconhecimento nos homens, mas pena que isso só ocorre dentro das frases largadas em páginas amareladas.

O mundo, leitores, estaria uma loucura se esses autores acertassem em pelo menos alguns desses pontos, não é mesmo? Isso porque a obra de cada um é bem mais abrangente e poderia provocar um surto de paranoia coletiva, ou de teorias da conspiração, entretanto, e novamente, apenas palavras escritas em papel, nada relacionadas com o mundo.

Mas, para finalizar, deixo uma citação do grande cineasta, Michael Bay:

“Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com o reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o teremim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo o que peço é um passatempo sólido.”

Brincadeira, ela é de Bradbury.

E não é para você sorrir.

Ps: O texto não corresponde, necessariamente, à opinião da equipe do Nota Terapia.

Ps 2: O artigo sofreu edições e foi atualizado em 05/06/2017

Related posts

Claudia Schroeder lança “Gatos falando alemão”, com poemas sobre a verdade do cotidiano

Cena de “O Conde de Monte Cristo”, nova minissérie da Mediawan, é revelada. Veja aqui!

Ailton Krenak lança primeiro livro dedicado ao público infantil