Uma das melhores coisas que Sons of Anarchy trouxe consigo e pôde me apresentar foi a sua trilha sonora. E no meio dessa obra-prima, com certeza, uma dos meus maiores achados foi encontrar as composições e performances de Jake Smith, também conhecido como o White Buffalo. E com uma incrível habilidade de nos manter presos e atentos à série enquanto suas canções quase sempre tocavam por completo, com a música que fecha o seriado não teria um resultado diferente. No entanto, o que muitos de nós não percebemos é a grande quantidade de referências que a música – composta pelo criador da série, Kurt Sutter, e o líder da banda Forest Rangers -, interpretada pelo já supracitado Jake Smith, nos traz e que, se consideradas, nos provoca um aumento considerável em relação ao plano de profundidade da série e da música e seu reconhecimento inegável de gigantesca qualidade.
“There’s a blackbird perched outside my window
I hear him calling
I hear him sing
He burns me with his eyes of gold to embers
He sees all my sins
He reads my soul
One day that bird, he spoke to me
Like Martin Luther
Like Pericles”
Já nessa primeira estrofe, nota-se a referência ao poema “O corvo” de Edgar Allan Poe, no qual o corvo que pousa umbral e “conversa” com o eu-lírico do poema: “Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!/Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais./ Disse o corvo, ‘Nunca mais’”. Além disso, tal como pode-se perceber pelo poema, o Corvo é um animal agourento, geralmente um mensageiro de más notícias.
“Come join the murder
Come fly with black
We’ll give you freedom
From the human trap
Come join the murder
Soar on my wings
You’ll touch the hand of God
And He’ll make you king”
Quando o eu-lírico dá voz ao corvo, que de certa forma, e de acordo com os versos, parafraseia Martinho Lutero e Péricles, na verdade, pode ser traduzida de maneira não tão usual e conhecida para nós, brasileiros, já que “murder”, além de ser assassinato, pode também significar o coletivo de corvos, e levando em consideração o início e a fala do próprio corvo com o eu-lírico, faz sentido que ele o convide para viver com os seus “semelhantes”. A tradução para “assassinato” também faz muito sentido se seguimos a linha da série, então as duas significações aparentemente estão corretas – apesar de eu colocar mais fé na do coletivo de corvos.
Mas, voltando aos nomes aos quais a música faz referência, sabemos que Martinho Lutero foi o precursor da revolta protestante, que culminou em sua excomunhão. Diz-se que Martinho Lutero estava descontente com os membros da Igreja Católica e muito por isso fez a “publicação” das suas teses. No caso, nota-se que a ave falara com o eu-lírico com promessas de uma vida melhor, de um caminho no qual, se fosse seguido, evitaria os erros da humanidade já cometidos, e de lá teria passagem para o paraíso.
O mesmo se vale para Péricles, que foi um líder ateniense, responsável por grandes feitos – inclusive pela construção do Pathernon, por exemplo – guiou o povo por inúmeras batalhas e saques, além de embelezar a cidade e incentivar a literatura e as artes. Era um líder nato.
Se olharmos o corvo que fala sendo o Clay, podemos ver uma clara referência às primeiras temporadas na série, nas quais há uma relação quase que de pai e filho entre os dois personagens, em que Clay é visto como um bom líder que os guia – de certa forma, leitor – para batalhas, e traz com isso diversas recompensas para os membros do clube; ou então como o próprio J.T. que em suas cartas tentava mostrar o caminho certo para uma vida que não fosse tão sofrida; ou, mais ousado ainda, afirmar que os corvos representariam os membros do clube e sempre o estão chamando para perto.
“His angels they turn my wings to wax now
I fell like Judas, grace denied”
Já nesses dois versos, há tanto as referências bíblicas, com as figuras angelicais, e a retomada da questão da morte, e o nome Judas, que foi o apóstolo que traiu Jesus – o verdadeiro e único salvador, de acordo com a Bíblia –, provocando a sua morte e, por isso, tendo sido condenado ao sofrimento eterno, ou seja, tendo a sua graça renegada no fim da vida. Porém, além da referência bíblica, há uma referência à mitologia grega – de novo vamos de volta à Grécia, leitor – ao falar que as suas asas foram transformadas em cera: Ícaro, filho de Dédalo, na sua tentativa de fugir de Creta com as asas artificiais construídas por seu pai, acaba por, ao querer se aproximar demais do Sol – apesar dos avisos do pai –, ter suas asas derretidas e morre nessa vã tentativa de alcançar a glória do sol.
Novamente, é um reforço que, se conhecido por nós, agrega muito à música e ao enredo do seriado, já que mostra toda a problemática da ambição, a problemática de não se escutar a verdade e como isso pode levar-nos a destinos fatais. Kurt Sutter, o criador da série, já disse: Sons of Anarchy é sobre como a mentira destrói as nossas vidas, sobre como você morre se vive na não-verdade.
“On that day he lied to me
Like Martin Luther
Like Pericles”
E já nesses versos, repare, leitor, na alteração do vocabulário escolhido pelo autor: o corvo mentiu – novamente reaparece a força e influência da mentira – para ele, como Martinho Lutero e Péricles. Mas, como pessoas que tinham tanta consideração/eram idolatradas, e cheias de boas intenções, poderiam ter mentido, você provavelmente me pergunta agora, leitor. Bem, Péricles, apesar dos seus grandes feitos na Grécia Antiga, foi acusado constantemente de ter usado demais/desviado dinheiro público e se acredita também que ele teria sido o responsável pela Guerra do Peloponeso, que causou devastação e várias mortes. Ou seja, da glória e do dinheiro, das pilhagens e da conquista, a morte e a pobreza foram consequências, tal como no seriado, e pode ser ressaltado por uma das falas de Jax ao afirmar que tenta sair de toda essa podridão mas que sente que a cada tentativa de melhorar, mais se afunda nesse mundo obscuro.
Enquanto isso, Martinho Lutero, que se dizia lutar contra a hipocrisia, acabou por causar uma série de revoltas que não conseguiu controlar, e, ao invés de promover essa liberdade da “armadilha humana”, acabou provocando, de certa forma, perseguições e até mortes daqueles que não o seguiam.
Novamente, o corvo, o mensageiro do mau agouro, sempre o acompanhou com a promessa de liberdade, de glória, e tudo, no entanto, que foi conseguido não passou de morte e podridão atrás de podridão. Em um paralelo com o desenvolvimento de Jax, pode-se notar as constantes tentativas de reparação dos erros do passado e ao mesmo tempo como ele se deixa levar pelo destino sanguinolento que o Corvo o fez seguir a partir do momento em que ele se juntou ao bando, ao “Murder”, que pode ser visto como um paralelo ao MC.
No entanto, já perto das últimas estrofes da música, o eu-lírico diz:
“So now I curse that raven’s fire
You made me hate, you made me burn
He laughed aloud as he flew from Eden
You always knew, you never learn
The crow no longer sings to me
Like Martin Luther
Or Pericles“
E tal como Jax, que deseja que os seus filhos cresçam odiando o pai, o eu-lírico canta para nós o seu ódio ao corvo e como ele que estava no Éden e fugira – outra referência bíblica, muito forte, aliás – e como, agora, perto da sua morte, não mais o ouvirá as suas mentiras, tampouco a sua “canção”. E, no fim do seriado e da música, seu sacrifício final foi feito e, possivelmente ele conseguirá tocar as mãos de Deus, já que teria de enfrentá-lo face-a-face para seu julgamento final.
“You’ll touch the hand of God
And He’ll make you king”