Marco do movimento Modernista brasileiro, Mário de Andrade continua se perpetuando até hoje seja pela genialidade, seja pelos processos vestibulares. Macunaíma, possivelmente a principal e mais conhecida obra do escritor, é uma rapsódia modernista completa e um mito sobre a ausência de um caráter nacional próprio: um herói que, se não é imoral, mostra-se completamente ausente dos padrões de moralidade a que estamos acostumados, aventurando-se por uma São Paulo mecanizada e desumanizada para buscar a Muiraquitã, talismã valioso para seu povo.
O que tem de bem humorada, irônica e por vezes perversa, tem a obra um deliciamento de leitura para o leitor. Listamos abaixo cinco trechos que provam que Mário de Andrade foi um autor tão conhecedor de boa estética literária e da língua portuguesa no Brasil, que criou uma obra para se ler em voz alta e com a boca cheia. Confira:
01 – Macunaíma, preto, se lava e fica branco, sobre a questão racial no Brasil:
“Uma feita a Sol cobrira os três manos duma escaminha de suor e Macunaíma se lembrou de tomar banho.
Porém no rio era impossível por causa das piranhas tão vorazes que de quando em quando na luta pra pegar um naco de irmã espedaçada, pulavam aos cachos pra fora d’água metro e mais. Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água. E a cova era que-nem a marca dum pé-gigante.
Abicaram. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.
Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém, a água já estava muito suja da negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo. Macunaíma teve dó e consolou:
— Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz.
Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifava toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou:
— Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não, mais sofreu nosso tio Judas!”
02 – Macunaíma chega a São Paulo, uma selva urbana mecanizada:
“A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou com os berros da bicharia lá embaixo nas ruas, disparando entre as malocas temíveis. E aquele diacho de sagui-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dormira… Que mundo de bichos! (…) A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs tinham rido ensinado pra ele que o sagui-açu não era saguim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles cevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés… Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina!”
03 – Deus está morto e a máquina é que está no lugar:
“Então (Macunaíma) resolveu ir brincar com a Máquina para ser também imperador dos filhos da mandioca. Mas as três cunhãs deram muitas risadas e falaram que isso de deuses era uma gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém não brinca porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía os distintivos traços femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza.
(…) a máquina devia ser um deus de que os homens não eram verdadeiramente donos só porque não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma realidade do mundo. De toda essa embrulhada o pensamento dele (Macunaíma) sacou bem clarinha uma luz: Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens. Macunaíma deu uma grande gargalhada.”
04- Macunaíma descreve em carta uma São Paulo viva, forte, desigual e poluída:
“Cidade é belíssima, e grato o seu convívio. Toda cortada de ruas habilmente estreitas e tomadas por estátuas e lampiões graciosíssimos e de rara escultura; tudo diminuindo com astúcia o espaço de forma tal, que nessas artérias não cabe a população. Assim se obtém o efeito dum grande acúmulo de gentes, cuja estimativa pode ser aumentada à vontade, o que é propício ás eleições que são invenção dos inimitáveis mineiros; ao mesmo tempo que os edis dispõem de largo assunto com que ganhem dias honrados e a admiração de todos, com surtos de eloquência do mais puro estilo e sublimado valor.
As ditas artérias são todas recumadas de ricocheteantes papeizinhos e velívolas cascas de fruitos; e em principal duma finíssima poeira, e mui dançarina, em que se despargem diariamente mil e uma espécimens de vorazes macróbios, que dizimam a população. Por essa forma resolveram, os nossos maiores, o problema da circulação; pois que tais insetos devoram as mesquinhas vidas da ralé e impedem o acúmulo de desocupados e operários; e assim se conservam sempre as gentes em número igual.”
05 – Macunaíma elogia (ironicamente) nossos políticos:
“Enfim, senhoras Amazonas, heis de saber ainda que a estes progressos e luzida civilização, hão elevado esta grande cidade (São Paulo) os seus maiores, também chamados de políticos. Com este apelativo se designa uma raça refinadíssima de doutores, tão desconhecidos de vós, que os diríeis monstros. Monstros são na verdade mas na grandiosidade incomparável da audácia, da sapiência, da honestidade e da moral; e embora algo com os homens se pareçam, originam-se eles dos reais uirauaçus e muito pouco têm de humanos. Obedecem todos a um imperador, chamado Papai Grande na gíria familiar, e que demora na oceánica cidade do Rio de Janeiro – a mais bela do mundo na opinião de todos os estrangeiros poetas, e que por meus olhos verifiquei.”