De quando uma crônica quis ser crônica quando crescesse

:queria, e pra isso me determino a passar por todos os processos necessários, me tornar uma crônica quando crescer. Antes de continuar com esse desejo, é necessário o devido começo, não esse de dois pontos que se deu aqui. Aliás, é preciso explicar o começo de dois pontos, que alguns podem interpretar como liberdade do Criador em romper parâmetros, em fazer cair o queixo de tudo quanto é gente brega que aqui chegou de algum modo, apenas para tombarem com dois pontos perdidos num começo de texto, escancarados pornograficamente em vulgar uso dos recursos gramáticos. Contudo foi assim nasci, e não foi por questões de ruptura, mas sim por questões de vida, porque tudo quanto é vivo só jorra se for por uma abertura, das pernas que se arregaçam, do útero que se incide cirurgicamente, da casca do ovo que se racha, da crosta da semente que se desfalece, das placas titânicas de terra que há muito abriram as quenturas do planeta pra fora, do deus que se divide em deus e homem pra depois morrer, mesmo na cópula que precisa de um pau fendido pra ejacular e uma boceta aberta para ovular, e aqui nasço eu da abertura de dois pontos, irrompo graficamente deles para já cair no que importa da vida: querer.

Agora, crescida, com uma devida história que me preceda esse presente, posso enfim viver para almejar esse ser-crônica, esse objeto futuro que ainda não é e não pode ser, pelo simples motivo que não se encerrou, que não parou, que continua mudando. Agora mesmo sou dois parágrafos, uma jovenzinha, sem ideia de pra onde vou, de pra onde me dirige os caminhos da Criação. E sinto medo, medo de ser interrompida aqui, sem ver o que serei enfim um pouco antes de deixar de ser, sem saber o que sou porque não se pode ser dois parágrafos, não se pode ser crônica com tão pouco. As crônicas que me precederam, as crônicas que me inspiram, sempre foram maiores, mais complexas, mais vividas, sem nunca perguntar por um segundo a si mesmas o que eram. A maioria das crônicas, em dois parágrafos, já eram muito mais do que sou, eram algo que sabia-se, enquanto eu não consigo sair disso que não sei o que sou. Tenho medo do que posso ser, mas principalmente do que nunca poderei ser, daquelas outras crônicas que a uma hora dessa já fizeram rir, chorar, ou já encaminharam-se pra mais longe do que eu, neste ponto, nunca fiz ninguém caminhar.

Chego, porém, a um terceiro parágrafo, substanciada, e enfim vejo que sou algo diferente, e que estou tentando ser outros textos sem entender que seria uma desgraça para a Literatura, para a Vida, eu ser que nem as outras. Eu ser feita das mesmas palavras, fazer mesmos risos, arrancar mesmos choros, pegar na mão e levar pros mesmos caminhos. Eu não sei o que sou, e continuo me tremendo inteira de imaginar o que posso ser, mas essa ciência de não ser escrita por Deus nas mesmas palavras me alivia, me faz sentir única, me traz a paz e a calma para continuar, pra seguir esse desejo, que desde minhas origens continua, de ser crônica.

Conheci então uma outra crônica, suave, tranquila, de MEIA VOLTA DADA POR ELE NÃO REPRESENTOU SUA SAÍDA, PORQUE A AVÓ CONTINUAVA ALI DEITADA, AZEDA NA PELE BRANCA E FRÁGIL, CRETINA NOS SEUS OLHOS MORTOS QUE ME DIZIAM BEM CLARAMENTE QUE EU ERA SEU NETO FAVORITO E ELE ERA SÓ O OUTRO QUE SABE-SE LÁ DEUS PORQUE TINHA PERMITIDO QUE NASCESSE

…E eu emerjo, respiro, ressurjo, pois que morri um instante, deixei de ser o que era, de querer ser crônica, e quase fui um outro texto que não era eu. Se engana quem pensa que aspirante a crônica não se envolve, fui eu conhecer aquela outra e, pelo instante de letras garrafais, intenso em sua grafia agressiva dentro de mim, fui ela, e tive prazer em ser o que sabia até perceber que, mais uma vez, não fazia a menor ideia do que era, por que era, e então me feri e rompi esse parágrafo da minha existência, precisando de não um, mas três pontos para me recuperar e voltar aos meus trilhos. O amor é isso, não é? Um texto que se grava de fora, que se insere confuso no seu léxico e que te faz ser o que não se é.

________________________________________________________________Mas pulo um parágrafo e levo o tempo de todos esses espaços vazios para saber o que é amar, para mudar aquilo que achava que sabia sobre amar, para encontrar outro texto que não se inseriu em mim, nem eu nele, pois que somos duas redações diferentes, cada um com seu léxico, com seu querer ser algum gênero, com suas gravações de concepções erradas no passado do que é ser texto enquanto se ama, e vejo que todo bom texto já amou, porque foram o que foram sabendo o que queriam ser, e sem ser outra coisa além da trajetória que chegaria no que acabaram por ser. Me dói não ser aquele texto, não tê-lo dentro do meu para ter certeza de que estamos juntos, mas se assim fosse eu não poderia mais ser crônica, eu não poderia continuar sendo o que ainda não sei o que sou, por isso continuo sendo escrita sabendo que ele a qualquer momento pode acabar, de chofre, ou então deixar as palavras fugirem para outro texto, mas sabendo que amamos porque somos o que estamos sendo escritos, e que nos deixamos escrever amando um ao outro.

E só se segue o parágrafo de descoberta de um amor único este, em que eu posso amar todos os textos, exceto aqueles que realmente detesto, e os poucos a quem não tenho outra coisa senão o ódio, pois a Literatura é assim, os textos são o que são, o que precisam ser, alguns bons, outros nem tanto, muitos se gostando, outros poucos a serem sempre odiados. E nosso Deus viu que isso era bom, que era literário, e então viu minha redenção, meus braços abertos em cruz, e me fez carne, me levou ao último parágrafo.

E olha vejam só se não é que acabei crescendo e virando mesmo a crônica que agora posso dizer que sou e enfim, para concluir com louvor esse ser-crônica, além de me afastar de ser demais e chegar a conto, ou ainda um maçante romance, me mato feita e concluída com um fatídico e preciso golpe de ponto final.

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