A adaptação dos Trapalhões para o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna

[Postado originalmente no Ovo de Fantasma]

A cultura popular brasileira é cheia de pontas e arestas que se entrecruzam e se repelem de acordo com os movimentos, pensamentos e memórias que habitam nosso imaginário. Algumas vezes, a cultura é dinâmica e viva, em outras apenas um monumento tradicional estável. A verdade é que cultura é sopro e, como tal, se espalha por dentre os homens e os veículos de informação e nos atingem quase como se não existissem e passam a viver como espécies de hospedeiros em nós. A vida de uma cultura popular está na capacidade dela se reinventar em diversos dispositivos e a morte está, justamente, na necessidade desenfreada de “preservação.” Enfim, o que quero dizer é que mudar perpetua e manter destrói toda e qualquer cultura. Por isso que Os Trapalhões no Auto da Compadecida é uma das obras mais interessantes e relevantes produzidas em nosso cinema e, assim sendo, merece alguns destaques.

Os Trapalhões no Auto da Compadecida, de Roberto Farias, é uma adaptação de Auto da Compadecida do dramaturgo Ariano Suassuna e conta a história de dois amigos – João Grilo (Renato Aragão) e Chicó (Dedé Santana) – que armam diversas confusões, inclusive com seus patrões, o padeiro (Zacarias) e sua esposa (Claudia Gimenez). Assim, acabam quase todos mortos e levados ao céu para um julgamento junto com Manoel, ou Jesus (Mussum).

O roteiro assinado por Roberto Farias e Ariano Suassuna faz da adaptação a que mais se aproxima da peça teatral. Mantém, inclusive, a ideia de “auto-circense” contida na obra, na medida em que há um palhaço narrador que se considera “autor e pecador” e também se inclui na história. O mais interessante, no entanto, fica a cargo da união de duas pontas de nossa cultura: De um lado, a cultura de massa dos Trapalhões, conhecidos pelos programas da TV e com diversas influências populares como o humor físico de Renato Aragão, o humor nerd de Dedé Santana, o humor caricato de Zacarias, e o humor malandro de morro de Mussum. Juntos, os quatro formam um interessante amálgama dos arquétipos criados por Suassuna e, assim, conseguem encarnar as diversas faces da cultura popular do nordeste descritas no auto. Essas duas frentes: o popular e a massa, integram-se sem que o popular se dissolva na massa e sem que a massa se torne careta com o popular. O resultado final é espantoso!

Destaco o céu construído por Roberto Farias, tal como descrito por Suassuna: um imenso picadeiro de circo onde crianças circulam e todas as peças de um xadrez da vida estão postas: os santos, os diabos e as pessoas. Todos reencenando um imenso teatro do mundo, espaço em que se revelam nossos desejos, vícios e virtudes.

Sucesso total na época, Os Trapalhões no Auto da Compadecida foi visto por 2.610.371 espectadores e foi um dos raros filmes da trupe a ser exibido em outros países como em Portugal. Trata-se de um filme singular em uma adaptação primorosa. Não é a toa que a montagem cinematográfica mais famosa da peça, feita por Guel Arraes em 2000, possui influências explícitas e diretas com a dos Trapalhões. Era de se esperar, pois ambas são resultado de uma intensa experiência coletiva de nacionalidade compartilhada. E, afinal de contas, é assim que a cultura popular deve ser – sempre pra frente.

Fonte:
http://ovodefantasma.com.br/2014/04/01/cineclube-ovo-de-fantasma-os-trapalhoes-no-auto-da-compadecida-1987/

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