“Boceta encantada e outras historinhas”: em seu livro de estreia, Sarah Forte propõe elevar a imaginação de seu leitor(a)

A vida seria opaca caso não pudéssemos brincar com a imaginação. É possível que ‘imaginar’ seja um dos verbos mais importantes para a literatura, especialmente para aqueles que escrevem. Sarah Forte, em Boceta encantada e outras historinhas, desafia o leitor a levar a imaginação à décima potência em 13 contos curtos. Incômodo, estranho e absurdo. Sim, a autora cearense pretende tirar o leitor(a) da zona de conforto e, quem sabe, te ensinar a ficcionalizar a vida. A imaginação, neste livro da editora Patuá — com prefácio da professora Dra. Sarah Diva Ipiranga e a orelha assinada pela escritora Natália Polesso — é desobediente, nem as margens do livro conseguem contê-la. 

O título é contra o pudor excessivo, uma escolha arriscada, que pode afastar os leitores conservadores, por outro lado, Sarah Forte é consciente de que a literatura traz, na bagagem, a provocação. Cada conto do livro é um território de invenção: meninos-mangas, Ets que se casam com humanas, bocetas encantadas e doces excessivos. A escrita é econômica, pouca descrição, porém são “[…] bem medidos, como uma casa de pilastras assentadas e telhados firmes.” Para Natália Polesso, que assina a orelha do livro, a pessoa leitora precisa confiar na narrativa e fazer um pacto com as imagens evocada pelos contos. 

Foto: reprodução

Logo no primeiro conto, a imagem evocada é a comida, muita comida. Uma mesa de alimentos para se esbaldar, muita comida para pouca vida. A personagem do conto Açúcar pensa, o tempo inteiro, sobre guloseimas: 

Em cada esquina, um pastel de frango, de queijo, de carne. Em cada rua, um pouco de caldo com pão de ontem. Na geladeira, muito doce, que é o que salva desta vida maldita. Torta de leite condensado, coco ralado e chocolate. Durante o trabalho, bombons variados. Não importava a marca, deveria ser doce, profundamente doce. Trufas! A massa branca de trufa, o despedaçar-se entre os dentes. O interior macio e refrescante de uma trufa leitosa. Um prazer lácteo e achocolatado numa combinação delirante. 

O final da personagem comilona é trágico, mas beira o cômico — qual esposa encomendaria centenas de salgadinhos sortidos e docinhos para o enterro de seu finado marido? No final do conto, o absurdo e o riso se encontram. Você gostaria de rir, porém sente que é desrespeitoso, afinal, a personagem morreu, mesmo assim, um breve risinho insiste em sair de seus lábios. 

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Bem na última página do livro, Sarah Forte diz que suas historinhas são esquisitas, mas breves contos são “[…] espaços de cuidado e proteção, casas para onde a gente pode ir e descobrir que o mundo é uma combinação entre acasos, esquecimentos e absurdos.” Mesmo que você não seja um escritor (a), em algum momento, inconsciente ou não, pensou em histórias fantásticas, incabíveis na realidade. 

Quando somos crianças, escrevemos fábulas, contos e crônicas para a aula de Português. Nessas horinhas, precisamos forçar um pouco a nossa mente a fim de pensar além do ordinário. Basicamente, Sarah Forte deixa subentendido em cada conto: seja ousado com a sua imaginação. 

De alguma forma, o livro da Sarah lembrou-me de um episódio da série The Studio, na Apple TV. Em determinado episódio, o protagonista — diretor de um estúdio fictício de cinema — vai à festa, a convite de uma mulher, cuja profissão é médica oncologista, com quem estava se relacionando. No evento, ela e os outros médicos ridicularizaram os filmes “patéticos” do protagonista, afinal, ser médico é mais importante do que um cineasta, eles salvam vidas. Irritado com tanto deboche, a personagem principal levanta uma questão interessante: tudo bem, vocês salvam vidas, mas nos quartos de hospital, sempre há uma televisão. Em outros termos, as tais histórias patéticas ajudam os doentes a resistir às suas doenças. 

A literatura é vital, como qualquer cura. Sarah Forte lembra-nos que imaginar não é apenas criar historinhas fantasiosas, mas também desafiar as formas de percepção que nos mantêm presos ao previsível. Suas histórias, estranhas e rápidas como faíscas, apontam para esse lugar no qual o riso e o incômodo se encontram, abrindo brechas para que a vida seja pensada de outro modo. Ficcionalizar é sobreviver. 

Quem é Sarah Forte?

Sarah Forte é professora de literaturas de língua portuguesa na Universidade Estadual do Ceará – UECE. Foi docente na Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos – FAFIDAM – e atualmente está na Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central – FECLESC – onde ministra disciplinas da área da literatura. Mora em Quixadá. Nascida em 1984, sempre gostou de ler, escrever e construir ficções como uma maneira de sobreviver de forma mais interessante.

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