“Malu” (2024) aborda a crueldade e o carinho entre três gerações de mulheres

Dado momento de Malu, a própria (Yara de Novaes), enquanto conversa com um padre, sugere que Jesus Cristo era pedófilo, para o horror do sacerdote e de Lili (Juliana Carneiro), mãe da protagonista. O padre, compreensivelmente, sai de cena, enquanto Malu profere um sem fim de xingamentos. Poderia ser só um momento de transgressão, revelando a personalidade iconoclasta e abrasiva da personagem-título, mas se torna mais que isso. Lili e Malu começam a brigar. A idosa arranha o rosto da filha que prontamente chuta a canela da própria mãe. Malu se fecha no próprio quarto, enquanto Lili fica no sofá, chorando. Ela se levanta e avisa a filha que é importante colocar Merthiolate no machucado. “Vai à merda!” é a resposta que recebe. Mancando, Lili se afasta, Malu então abre a porta e pergunta “Está tudo bem? Machucou?”.

Essa cena encapsula bem o filme de Pedro Freire, onde a graça e o carinho caminham ao lado da crueldade íntima que só um parente pode causar. É uma obra que desafia a nossa simpatia, com personagens absolutamente trágicos e carismáticos, mas capazes de infligir uma dor enorme em outrem num piscar de olhos.

Uma atitude que não vem do nada. Um elemento que torna Malu tão fascinante é explorar não somente a relação entre essas mulheres, mas também a relação delas com a história brasileira. Cada uma, à sua maneira, fruto do seu tempo. Malu sofreu e viu amigos sofrerem durante a ditadura, e a transgressão que choca e cria atrito, na sua juventude era ferramenta de resistência, elemento que parece um pouco distante para sua filha Joana (Carol Duarte), que tem outras preocupações mais imediatas em mente, como seu futuro financeiro.

Como sua protagonista vem do teatro, nada mais justo que o longa em si seja um pouco teatral. A narrativa se desenrola dentro da casa de Malu, em eterna construção, e o lado de fora pertence somente para sinalizar a chegada e saída de alguém. O espaço caseiro se torna um microcosmo do conflito de três épocas completamente distintas do Brasil, personificados nessas mulheres.

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A câmera de Freire dá espaço para as atrizes, quase sempre buscando seus rostos e reações aos eventos ao seu redor. Destaco a cena em que Lili se relembra de um momento traumático da sua infância, após fumar um baseado pela primeira vez. O local é compartilhado com Malu e seu amigo Tibira (Átila Bee), mas enquanto Lili fala, é como se os outros personagens desaparecessem, só há espaço para a voz e expressões de Juliana Carneiro, que reconta a sombria memória que lhe pesou a vida toda. A cena corta e vemos o rosto de Malu com um misto de choque e compreensão com a dor da mãe.

Mas o trunfo de Malu é nunca deixar seus personagens serem uma coisa só por muito tempo, se em um momento nos compadecemos profundamente de Lili, na cena seguinte ela comete uma violência absurda, e a câmera a acompanha da mesma maneira. É importante que se testemunhe todas as facetas de uma pessoa. Um ser humano pode ser digno de carinho, mas também ser horrível. 

Essa complexidade, tão rara, faz de Malu, simultaneamente, um filme leve e pesado. Leve, pois as personagens nunca deixam de ser fascinantes e curiosas de se observar. A obra abre com Malu dando uma profunda gargalhada, e há uma empolgação palpável quando ela fala dos seus projetos. Até Lili, tão certinha e conservadora, mija no meio da rua, sem o mínimo de vergonha. Graça, simpatia e horror, assim é a vida, assim é Malu.

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